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Antes de ontemDeviante

Inteligência Artificial Transformativa

29 de Março de 2024, 17:45
Por: Pena

O Santo Graal da Inteligência Artificial é a chamada IAG (Inteligência Artificial Geral), uma IA capaz de realizar qualquer atividade intelectual igual ao melhor ser humano de cada área, ou seja, uma máquina que seria o Einstein em todas as especialidades. Hoje existe uma corrida entre as big techs para alcançar a IAG, e não há dúvida de que quem fizer isso primeiro terá um poder absurdo no mundo. Alguns, como eu, acreditam que a IAG surgirá ainda nesta década; outros acham que virá em menos de 5 anos. Pelo andar exponencial das IAs, pode ser possível ocorrer até antes disso.

Fato é que, no momento em que a IAG chegar, ela poderá fazer diversas coisas interessantes, incluindo a tarefa de projetar uma máquina ainda mais inteligente, uma SIA (Superinteligência Artificial). No entanto, não sabemos quão rápido ela seria capaz de realizar essa e outras tarefas realmente impactantes no mundo. O próprio Einstein levou 10 anos para refinar sua teoria da relatividade e passou o resto da vida buscando um jeito de unificar a relatividade com o eletromagnetismo, sem sucesso. Não é porque surgiu uma IAG que imediatamente o mundo será transformado. Talvez falte processamento ou energia suficiente para que ela rode de maneira rápida. Talvez falte um jeito eficiente de enviar zilhões de dados para a máquina analisar. Talvez ela leve anos para conseguir projetar a máquina superinteligente ou para descobrir coisas revolucionárias como novos materiais incrivelmente leves e resistentes, novas formas de energia limpa e barata, ou qualquer outro avanço profundamente transformador (o que pode incluir impactos negativos, caso essa máquina não esteja tão interessada no bem da humanidade). Essa máquina, que agora é capaz de transformar profundamente a humanidade, para o bem ou para o mal, chamaremos de IAT, uma Inteligência Artificial Transformativa.

O processo que ocorre do surgimento da IAG até a chegada da IAT é o que chamamos de Decolagem. Pense num avião decolando na pista. Enquanto ele está ganhando velocidade sobre o asfalto, ainda há formas de segurar o avião ou meios de interferir com o voo. Alguém pode desligar seu motor ou bloquear a passagem com um obstáculo. Fato é que o avião ainda está no chão e acessível a nós, humanos, que também estamos no chão. Mas, no momento em que ganha velocidade suficiente para alçar voo, o avião se torna capaz de realizar tudo para o qual foi de fato projetado, além de escapar permanentemente das nossas rédeas. Esse é o ponto que chamamos de Singularidade Tecnológica, e queremos muito que esse avião seja pilotado por uma IA benevolente, ou, como eu gosto de chamar, uma IAmiga. Hoje existe muita especulação se a decolagem será rápida ou devagar. A diferença entre elas pode ter consequências enormes. Me diga se você tem interesse em saber mais sobre a Decolagem ou outros assuntos ligados à IA, que aí eu me animo em continuar a escrever por aqui.

O Brasil Vai Pro Espaço #11 Feliz Ano Novo

23 de Dezembro de 2023, 00:14
Por: Pena

Este é um conteúdo em formato podcast, mas, se preferir, pode acompanhá-lo com o texto e imagens a seguir.

Para ver todas as imagens deste episódio, entre nesta galeria.

Capítulo 1 – Insistente

Aquela explosão foi um balde de água fria para os brasileiros. A Pioneira era a primeira falha em quase uma década de lançamentos. Foram 16 sucessos na sequência, um marco que beirava o inacreditável e que só poderia ser explicado pela mandinga do Vai Filhão:

Começou com o foguete de combustível sólido de 1949, o primeiro a ser embalado pelo Vai Filhão improvisado do Cassani.

Foram 9 Arapuás, as abelhinhas de dois estágios com o segundo a combustível líquido: a Garbosa, a primeira lançada de Alcântara; a Suave, que pousou de pára quedas; 3 abelhas meteorológicas, a Farofa, a Paçoca e a Pipoca; e 4 lançamentos biológicos: a Ratazana, o Zé Carioca, o Mickey e o Perna Longa.

Também tiveram 4 Laurares de sucesso, o marimbondo, que era uma cópia grande do foguete V-2: primeiro o Majestoso, cumprindo os 1000km exigidos pela FAB; depois o Curioso, que tirou as primeiras fotos do Brasil do espaço; seguido do Félix, o primeiro gatonauta do mundo, e da Silvanda, cuja ogiva errou o alvo mas o foguete foi um sucesso.

Pra fechar a conta, ainda houve 2 lançamentos do Arapurare, o foguete cujo primeiro estágio era um Marimbondo e o segundo uma Abelha: O Atrevido e o Formidável, ambos passando dos 4.500km.

O problema é que falhas em lançamentos eram esperadas e ocorriam constantemente com outros países, mas o brasileiro simplesmente não estava acostumado com aquilo. Somava-se a isso a opinião internacional geral de que o Brasil não tinha capacidade para pôr um satélite em órbita, aquele feito demandava muito mais do que lançar abelhas ou marimbondos. Americanos e russos olhavam quase com pena para o esforço brasileiro. Era como se o Brasil fosse um plebeu que aprendeu a montar cavalos e resolveu aparecer no baile de gala do palácio vestido de cavaleiro. Ele não se encaixava nessa realidade e, mais cedo ou mais tarde, iria cair do cavalo e voltar à sua realidade de plebeu, ou país de terceiro mundo como eles falavam naquela época.

Aquele ano seria o decisivo. A promessa de JK de lançar um satélite até dezembro de 58 para participar da elite científica mundial era um comprometimento sem volta, um all-in como se falava nas mesas de poker, era tudo ou nada.

A equipe de engenheiros, porém, estava bastante desolada. O Zé, que sempre foi o mais confiante dos confiantes, que tinha o super poder da gambiarra, agora já olhava com dúvidas depois que sua grande obra prima, o motor RD-108, tinha falhado.

Mas isso não era nada diante do receio com o motor do segundo estágio. Não sei se vocês se lembram, mas, lá em 1955, quando houve a negociação com os soviéticos por um espaço na Base de Alcântara, o Brasil aceitou um motor de foguete para aviões, o S-155, para ser seu motor de segundo estágio. Richard, na época, ficou desconsolado, dizendo que era um motor assimétrico e gerava um impulso levemente na diagonal, que funcionaria num avião mas nunca num foguete, pois o faria voar sem controle. Zé tinha uma ideia maluca de como resolver isso e agora chegou o momento de eu contar para vocês.

O argumento era simples. Em vez de instalar apenas um motor daqueles no foguete, eles colocariam dois, um espelhado ao outro. Pra entender melhor, vamos pensar num barquinho com dois remadores, cada um de um lado.

Quando o remador da direita empurra seu remo para trás, acontecem duas coisas. A primeira é que, ao movimentar a água para trás, o barco recebe um impulso para frente. A segunda é que, por esse movimento ocorrer do lado direito, o barco também vira um pouco para a esquerda. Quando o remador da esquerda empurra o remo para trás, o resultado é espelhado: além do barco receber um impulso para frente, ele vira ligeiramente para a direita. Então, para o barco ir apenas para frente, basta os dois remadores remarem juntos, ao mesmo tempo, pois os giros se cancelam e o impulso para frente é somado.

Essa era a ideia do Zé, colocar dois motores, cada um sendo um remador. O giro que um motor causaria seria cancelado pelo outro motor e o foguete iria perfeitamente para frente, certo? Fácil.

Não, nada é tão fácil. Voltando à nossa analogia do barco, é muito raro que os dois remadores tenham exatamente a mesma força na hora de remar. Basta que um deles reme ligeiramente mais forte que o outro para que em pouco tempo o barco esteja fazendo uma curva. No caso do barco é facil resolver, quando começar a girar, basta o remador que tava fazendo mais força começar a remar com menos força e assim, eles vão fazendo pequenos ajustes a cada remada, para manter a direção. É um sistema que se auto regula.

Mas motores não são remadores. Se o motor da direita estiver, digamos, ligeiramente mais forte que o da esquerda, ele não vai sozinho diminuir a potência, e em pouco tempo o foguete vai perder o controle. É praticamente impossível fazer dois motores totalmente idênticos. Qualquer pequena diferença de força ou alinhamento vai fazer o foguete perder seu rumo. Então é preciso inserir um sistema de controle.

São pequenos escapamentos colocados nas laterais do foguete que podem soltar jatos de gás que dão leves empurrões para um lado ou para o outro toda vez que ele começar a sair do eixo. São pequenos peidinhos que ficam corrigindo a trajetória. O nome desses escapamentos é Sistema de Controle de Reação e eles já tinham que ser colocados de qualquer jeito no foguete, para que ele pudesse fazer curvas no espaço. Então, a ideia do Zé, era usar o Sistema de Controle de Reação para corrigir as imperfeições dos motores. A solução parece boa né? Mas fazer isso na prática é muito difícil, precisa de sensores precisos e um controle muito rápido para fazer uma dúzia de correções por segundo. Uma pequena falha e o foguete perde o controle.

— Nunca te vi tão agitado Zé, você tá bem?

— Ahh quatro-olho… não consigo nem dormir. O maior problema desse lançamento nem foi perder o foguete. Foi não ter tido a chance de testar o segundo estágio. É tanta coisa que pode dar errado com os motores de cima. E fui eu que dei essa ideia, agora já nem sei se acredito que vai funcionar.

— Eu sei Zé, mas não tem o que fazer. A gente só deve ter mais um lançamento antes do final do ano. Não dá tempo de reprojetar nada.

— Se não fosse essa promessa maluca do presidente, a gente podia fazer as coisas com calma. Nessa correria toda, qual a chance de dar certo?

— Não sei. Tudo que a gente criou até agora funcionou, esse tem que funcionar.

— Será que a gente foi longe demais?

Pra piorar as coisas, no dia primeiro de fevereiro os EUA conseguiram lançar com sucesso seu primeiro satélite, o Explorer 1, e agora a pressão recaía totalmente no Brasil. É verdade que ao tentar por seu segundo satélite em órbita, os americanos tiveram duas falhas de lançamento, mas, com a estrutura industrial que eles tinham, conseguiam produzir um foguete novo a cada mês, enquanto que o Brasil levava seis vezes mais tempo. Os soviéticos também tinham uma produção ágil. Até o fim de maio, EUA e URSS já tinham ambos 3 satélites em órbita.

Em 8 de junho de 1958, apenas dois dias antes de começar a Copa do Mundo da Suécia, a Tanajura 2 – Insistente estava na plataforma, sob centenas de olhares apreensivos e milhões de ouvidos angustiados colados nos radinhos de todo o Brasil.

— 3, 2, 1 partiu, partiu, partiu… Vaaaaaaai Filhãaaaaaao. O motor acendeu, agora vai, agora vai, agora tem que ir. A Tanajura tá subindo firme e forte, já passou dos 500m, e começou a fazer um arco para leste. Tudo certo, tudo nominal galera!

Ada e Chico Santos, o piloto novato, acompanhavam tudo do pátio do Centro de Pesquisas Tripuladas.

— Vamo Tanajura, você é a nossa esperança. O programa tripulado depende de você.

— Eu que não quero voltar pra casa tão cedo, cabei de chegar. Cutuca a chilena Tanajura!

Depois de 2 minutos e 15 segundos de voo, o combustível do primeiro estágio terminou.

— Atenção galera, agora é um momento importante, o segundo estágio tem que separar do primeiro. Aguardando a telemetria. Deve ocorrer a qualquer momento… Confirmado! Separação com sucesso.

— Deu certo? Deu certo?

— Por enquanto sim major, seu major. Mas a parte crítica ainda tá por vir.

Nesse momento, todo o cilindro gigante de 16m, a bunda da Tanajura, se separou da parte da frente, do corpo da formiga, que seguiu voando de maneira livre na chamada fase de planeio, só na banguela. Depois de mais 1 minuto e meio, é chegado o momento de acionar os dois motores S-155 do segundo estágio. Agora era a hora que os dois remadores iriam assumir, e o sistema de reação teria que controlar o foguete de maneira perfeita.

— 5 segundos para acionar o segundo estágio, galera. Muita tensão aqui. Ninguém respira. Atenção… Ligou!… e o foguete… tá rodando?!

— Merda! Não acredito! O que deu errado?

— O motor da direita não acendeu. Ahh não, não é possível.

Sem o motor da direita, era como se só tivesse um remador no barco. O foguete começou a girar e girar cada vez mais rápido. Embora estivesse já no espaço, voando a uma altura de 270km, para fazer órbita ele teria que acelerar até 28 mil km/h para o lado, o que era impossível nessa situação.

Após 10 minutos de voo, o segundo estágio caiu de volta para a Terra e se desintegrou na atmosfera. O sonho do satélite brasileiro havia terminado.

Capítulo 2 – Copa do Mundo

Parecia que o efeito mágico do “Vai Filhão” tinha chegado ao fim, e isso no pior momento possível. Para tentar fazer um terceiro lançamento ainda naquele ano seria preciso correr de maneira absurda, isso enquanto se analisavam os problemas do motor que não ligou pra tentar corrigir a tempo do próximo lançamento. O Brasil parecia que estava de luto, e isso a dois dias da Copa do Mundo. E pra piorar tudo, a diretoria da CBD (Confederação Brasileira de Desportos) tava pensando em modificar o uniforme da seleção.

O motivo era o seguinte:

Por conta de todo o sucesso do programa espacial durante esses anos todos, e das pessoas usando cada vez mais no dia-a-dia o “Vai Filhão” como um grito de sorte, acharam que seria uma boa ideia bordar o “Vai Filhão” na camisa da seleção. Qualquer superstição era válida para ajudar nossos jogadores depois do fiasco da última copa.

Só que com os dois últimos lançamentos fracassados, o sentimento começou a se inverter. Será que o “Vai Filhão” iria trazer azar pra seleção? Houve muita pressão para retornar ao uniforme original mas viram que não era possível naquele prazo. Era bom que a mandinga voltasse a funcionar, e logo.

No primeiro jogo, o Brasil mostrou a que veio e já encaixou um 3×0 na Áustria, mas no segundo o time foi mais apático e ficou no 0x0 contra a Inglaterra.

— Pelo menos não tomou gol, a camisa tá dando sorte! – Dizia uma comentarista esportivo no rádio.

O terceiro jogo era, olha só, contra a União Soviética. Fizeram uma grande festa no Centro de Lançamento de Alcântara, onde brasileiros e russos se reuniram para escutar juntos, nas  caixas de som, a transmissão ao vivo pela rádio.

E dessa vez o Vai Filhão não decepcionou. Aquele jogo foi a estreia do Pelé na Copa, com apenas 17 anos, e também de Mané Garrincha, o ponta-direita de pernas tortas conhecido pelos seus dribles desconcertantes. Os primeiros 3 minutos de jogo foram alucinantes, e considerados por muitos como os 3 minutos mais incríveis da história do futebol, que a gente ouve agora na voz de Edson Leite e Pedro Luiz:

[rádio: 3 minutos contra a URSS]

Com duas bolas na trave de Garrincha e Pelé, mais o gol de Vavá, aqueles 3 minutos anunciavam para o mundo duas lendas do futebol, Pelé e Garrincha, que viraram titulares a partir de então. O jogo terminou 2×0, mas o placar não fez jus ao espetáculo em campo.

Nas quartas de final, a seleção pegou um País de Gales que jogava na retranca, com uma marcação muito forte, ao melhor estilo inglês. Mas aos 21 minutos do segundo tempo:

[rádio: primeiro gol de Pelé]

Pelé marcava seu primeiro gol numa copa do mundo e garantia a seleção para a semifinal.

Contra a França, que tinha um poderoso ataque liderado pelo artilheiro da competição, Just Fontaine, era o confronto do melhor ataque contra a melhor defesa, já que o Brasil não tinha levado gols.

Ao final da partida, o Brasil aplicava um chocolate de 5×2, com direito a 3 gols do jovem Pelé.

A final era contra os anfitriões, a Suécia, e de repente começou um pesadelo. Como ambas as seleções jogavam de camisa amarela e calção azul, o Brasil perdeu no sorteio e teria que apresentar um segundo uniforme. A delegação teve que comprar um conjunto de camisa azul e calção branco de última hora, e muita gente ficou de madrugada bordando o “Vai Filhão” em cada uma delas. Afinal, estava claro que a magia tava funcionando.

Ou será que não? Logo aos 4 minutos de partida:

[rádio: primeiro gol da Suécia]

Mas aos 9 minutos, Garrincha faz bela jogada pela ponta direita e cruza para Vavá empatar. Antes do intervalo sairia o segundo gol do Brasil de uma jogada praticamente idêntica.

No segundo tempo, Pelé faria um dos gols mais bonitos de todos os tempos, dando um chapéu dentro da área e chutando de primeira:

[rádio: magistral gol de pelé]

Ele ainda faria mais um gol, totalizando um 5×2 convincente na final.

[rádio: Brasil recebendo a taça – Brasil campeão mundial de futebol]

Capítulo 3 – Apoena

O título trazia um novo ânimo para o Programa Espacial, o que ajudava bastante já que todos trabalhavam no limite para tentar entregar um último foguete antes do ano acabar.

Nesse meio tempo, Chico e Ada fizeram missões mais modestas com o Apoena, para testar alguns detalhes específicos do regime supersônico. Mas como ficavam a maior parte do tempo ociosos, passaram a ter uma rotina de treinamento na centrífuga e a trabalhar junto dos engenheiros no projeto da próxima cápsula tripulada, enquanto aguardavam o novo jato experimental, o S-3, ficar pronto.

Tentando trazer mais visibilidade e popularidade para o programa, JK resolveu transformar o Centro de Alcântara numa base civil, que pudesse receber visitantes e trazer prosperidade para a região. Fazia parte do seu plano de metas desenvolver as áreas menos populosas, levando estradas, indústrias e energia. Transformar Alcântara num pólo turístico seria valioso para trazer mais recursos para o Maranhão e região.

Assim, o desfile tradicional de 7 de setembro iria acontecer justamente na Base de Alcântara, inaugurando o Centro de Visitantes Tenente-Coronel Ivo Lopes, com uma área de exposição com foguetes e motores reais, além de um memorial dedicado ao Ivo, com fotos de sua carreira e os destroços do Goitacá.

Nesse dia também ocorreria o último voo do Apoena. Depois de 3 anos de dedicados serviços e missões recordistas, a aeronave seria aposentada. Os cientistas já tinham extraído tudo que podiam dele e a fuselagem já dava sinais de desgaste. Ada, obviamente, foi a escolhida para fazer as honras: um voo acrobático durante o desfile de 7 de setembro.

Ada cantando o hino nacional antes de embarcar no Apoena, durante o desfile de 7 de setembro. Ela até pintou o cabelo para a ocasião.

— Vamo meu menino. É nossa última aventura juntos. Bora se divertir!

Fazendo loops, parafusos e todo tipo de manobras arrojadas, Ada roubava gritos e aplausos dos espectadores. O Ministro da Aeronáutica, o Major-Brigadeiro Francisco Corrêa de Mello, não estava acostumado com ousadia da Gaivota Solitária:

— Essa Ada é realmente uma piloto singular mas… ELA NÃO TÁ PASSANDO muito perto dos edifícios?

— Naahh, relaxa brigadeiro, depois de um tempo…  VOCÊ SE ACOSTUMA COM o estilo dela.

Após o pouso perfeito, Ada é ovacionada. Ela, porém, se demora um pouco mais na cabine para se despedir do companheiro.

Obrigado por tudo Apoena, agora chegou o momento de você descansar.

O Apoena é colocado no museu do Centro de Visitantes, na posição de destaque. Milhares de pessoas passaram por ali naquele dia para ver de perto a aeronave que havia subido mais alto do que qualquer outra do mundo. O aeroporto de São Luís, que era militar, foi convertido numa instalação civil para poder receber turistas de todo o Brasil e até do exterior. Aquela região viraria um polo tecnológico e cultural importante em pouco tempo.

Quer dizer, isso se a promessa de JK puder ser cumprida.

Capítulo 4 – Obstinada

A construção da Tanajura 3 – Obstinada estava a todo vapor. Mais 10 engenheiros foram recrutados para acelerar o passo e assim, no dia 31 de dezembro de 58, o satélite brasileiro estava sendo integrado na parte de cima do foguete.

Quem desenvolvia os satélites era um departamento recém criado dentro do Centro Técnico Aeroespacial em São José dos Campos, o INPE – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Desde que havia começado o programa orbital, viu-se a necessidade de um grupo dedicado de cientistas para criar, testar e desenvolver a tecnologia de satélites.

Os primeiros dois satélites eram um simples cone metálico com duas antenas saindo da parte de baixo, e carregavam a bordo apenas um termômetro, um barômetro e mais alguns sensores para telemetria.

Porém, durante esses anos de pesquisa, o INPE já havia criado equipamentos bem mais interessantes para por no espaço, mas que só seriam embarcados depois do primeiro lançamento de sucesso. O problema é que, talvez, não existisse um novo lançamento. Com a pressão internacional diante da promessa do JK, e o descontentamento interno com dois fracassos seguidos, outra falha seria um revés difícil demais para justificar todo o dinheiro público empregado. O Brasil teria que assumir a posição de plebeu que apareceu na festa dos países ricos fantasiado de nobre. Então, para esse lançamento, decidiram colocar todos os instrumentos no satélite. Se fosse a última tentativa, não tinha porque poupar equipamentos.

Na parte de baixo do cone metálico, além das duas antenas, havia agora um contador geiger, para medir a radiação do espaço; um espectrômetro de massa, para coletar e identificar moléculas flutuando no vácuo; um detector de micrometeoritos, para avaliar os impactos de pequenos corpos entrando na órbita terrestre; uma vara telescópica com um magnetômetro na ponta, para medir o campo magnético fora da atmosfera; e uma câmera de TV especial, para resistir ao espaço, capaz de enviar imagens em tempo real. Tudo aquilo estava embarcado naquele cone dourado, estampado com o número 3 e uma pequena bandeira do Brasil.

O sol já estava baixando enquanto Jayme e Zé ainda lutavam para instalar corretamente os últimos componentes.

— Ah merda, não tá encaixando. Essa vara magnética é muito grande.

— Droga Zé, o dia tá acabando, a gente tem que lançar antes da meia noite.

— Isso é a coisa mais idiota que já vi. Que diferença faz se a gente lançar amanhã, de dia, depois de dormir decentemente pelo menos uma vez depois de 2 meses.

— Também acho ridículo. Mas é o ego do presidente. “Promessa é dívida” e todo aquele discurso sobre dignidade internacional.

— Mas eu prefiro atrasar um dia e acertar o lançamento do que cumprir o prazo e o satélite não fazer órbita.

— Concordo. Eu ainda tenho que testar cada subsistema e não vai dar tempo. Vai ter que ser na sorte.

Faltando 15 minutos para a meia noite, uma plateia de engenheiros, cientistas, jornalistas, funcionários, visitantes, políticos, o próprio presidente, e o gato Félix, mal respiravam quando a contagem regressiva teve início.

— 10, 9, 8…

As câmeras de TV apontavam para o foguetão de 22m e 58t. Aquele seria o primeiro lançamento transmitido ao vivo pela TV.

— 6, 5, 4…

O coração de milhões de brasileiros se apertava, pulsava em câmera lenta. Toda uma década de programa espacial estava em jogo.

— 3, 2, 1. Vaaaaaaaaaaaiiiiii Filhãaaaaaaaaoooooo. Partiu, partiu, partiu. A Obstinada tá subindo, o motor funcionou, a chama tá estável, sem oscilação, tudo certo por enquanto, galera!

A Tanajura disparou pro alto e no céu noturno só era possível ver o brilho do motor queimando forte. Parecia um cometa.

— Que tá havendo Jayme, por que tá demorando tanto? Não esconde nada!

— Calma senhor, major. Tá tudo nominal. Nada errado por enquanto!

— Vamo Tanajura! Nunca te pedi nada.

— Agora vem aquela parte que vocês já sabem, a separação dos estágios. A tensão é gigante aqui na torre de controle, eu tô passando mal! Vamo lá, atenção… SEPAROU! Deu certo. O segundo estágio continua subindo, na banguela. 160km de altura e subindo.

Agora começa a contar os 90 segundos mais longos da história do Brasil. Ao final dessa contagem os dois motores do segundo estágio seriam acionados. Se qualquer um deles falhasse ou apenas demorasse meio segundo a mais pra ligar, o foguete entraria num giro irrecuperável.

— Atenção galera, toda mandinga agora é válida. Faltam 5 segundos para ligar o segundo estágio… 3, 2, 1… aguardando… LIGOU! os dois motores tão funcionando! Incrível!

— Deu certo? Deu certo?

— Os dois motores ligaram, agora tem que ver se o sistema de reação vai manter o foguete estável…

— Vamooo, por favor, por favor…

— Recebendo telemetria…

— Fala Jayme, fala logo!

— Deixa eu ver… o erro na trajetória é de… 10^-2 graus, tá estável TÁ ESTÁVEL!

— Caralhooooo, não acredito!

— Yesss, Unbelievable… parabéns Zé, sua ideia maluca funcionou.

— Chefinho, você é o cara, vou apertar a sua bunda, seu gostoso.

— Tá em órbita? Já pode abrir o champanhe?

— Ainda não, são mais 2 minutos de queima. E depois tem uma última separação.

— Ai não, eu vou morrer antes disso… 

O gás chamado óxido nitroso passa por um catalisador que separa o oxigênio do nitrogênio, o que libera energia e acelera o gás por tubinhos que saem do foguete como jatos pelas laterais. Esses jatos, disparados aqui e ali, é que vão mantendo o foguete alinhado. O curioso disso tudo, porém, é que o óxido nitroso é também chamado de gás do riso, e parecia que ele tava sendo liberado na sala de controle. Estava todo mundo tenso mas com um sorriso solto no rosto. Faltava pouco, muito pouco.

— Temos confirmação, os motores desligaram. O segundo estágio já está em órbita galera. Mas ainda falta uma última etapa. A coifa do segundo estágio precisa se abrir e liberar o satélite. Atenção… momento crítico agora…

— O que tá acontecendo, Jayme? Fala alguma coisa, pelo amor de Deus!

— Ahh, éeee, acho que tá abrindo…

— Demora um pouco, é um motor elétrico vagabundo.

— Com tanta grana que a gente tá pondo nisso, tinha que ser algo vagabundo, Zé? Não me dá essa notícia agora.

— Foi mal, major, seu major, mas é que tinha que ser um motor muito leve. É vagabundo mas é boa gente.

— FOI… SATÉLITE EM ÓRBITA COM SUCESSO!

— Inacreditável galera! O Brasil tem oficialmente um satélite no espaço. Que momento histórico! E olha só, no meu relógio, falta 1 minuto para a meia noite!

— Esse presidente é muito sortudo mesmo, hein. 

— Deu certo, cumprimos a promessa. A gente tá na corrida, porra!

— Agora posso abrir o champanhe?

— Pode major! Parabéns, temos um satélite!

— Parabéns para você Richard, você e seus garotos que fizeram tudo isso acontecer. O Brasil tá em órbita! Cuidado aí seus gringos, a gente tá só começando!

— Feliz ano novo!

Epílogo

Você ouviu o último episódio da primeira temporada de “O Brasil vai pro espaço”, produzido pelo Scicast.

Sim, este foi o último episódio por agora, mas a série continua ano que vem. A data exata ainda não sei, a gente vai levar um tempo para produzir a próxima temporada, mas fica de olho para não perder, ainda tem muita reviravolta para acontecer em Alcântara e com os nossos queridos personagens.

Eu me sinto muito privilegiado de poder realizar essa obra. É um trabalho enorme que só foi possível por conta de amigos queridos que se dedicaram horas e horas nesse projeto, seja fazendo vozes, revisando, editando, criando efeitos sonoros, dando consultoria, fazendo críticas e dando ideias. Agradeço muito a cada um de vocês, vocês são amigos incríveis.

Também quero dar um agradecimento especial a você ouvinte, que está acompanhando essa epopeia. Uma obra só se realiza ao ser apreciada. São vocês, que ouvem cada episódio, que permitem tudo isso existir. Também agradeço pelas indicações e compartilhamentos. Quem sabe se a audiência crescer, conseguimos algum apoio para trazer uma nova temporada mais cedo e com mais qualidade.

Tenho recebido várias mensagens de pessoas que gostariam de ver camisetas temáticas sobre a série, talvez com o logo da série, ou imagens dos foguetes brasileiros, ou ainda estampas com nossos ídolos aviadores: Ada e Ivo. Às vezes até outros tipos de produtos. Se você se interessa por alguma dessas coisas ou tem sugestões de outras memorabilia, por favor comente no post ou fale comigo no insta ou no xuiter: “@penadoxo”. 

E agora voltemos aos fatos que baseiam este episódio:

Os EUA e URSS lançaram diversos satélites e sondas durante o ano de 1958, com uma quantidade grande de falhas. Nessa época os foguetes eram bastante inconstantes, principalmente os motores que tinham uma taxa razoável de não acenderem ou perderem força. Vale dizer que na simulação são usadas as porcentagens reais de sucesso dos motores, que vão aumentando conforme você vai adquirindo mais e mais horas de voo. Foi uma sorte absurda ter ocorrido tantos lançamentos de sucesso seguidos, que eu prefiro pensar que foi devido ao poder do “Vai Filhão”.

Talvez você tenha estranhado eu falar na entidade CBD em vez da CBF. O motivo é que a Confederação Brasileira de Futebol foi fundada apenas em 1979. Antes, quem tocava o futebol e os demais esportes olímpicos do país era a Confederação Brasileira de Desportos.

Sobre a troca da cor do uniforme da seleção na final da copa, realmente o Brasil não tinha uniforme 2 e houve um esforço de última hora para comprar as camisas azuis e os shorts brancos. E se você acha meio absurda essa ideia supersticiosa de bordar o “Vai Filhão”, saiba que o uniforme azul e branco tinha sido abolido após a derrota para o Uruguai na final da Copa de 50, por supostamente trazer azar. Isso explica inclusive o Brasil não ter o uniforme 2 na Copa da Suécia.

Um ouvinte mais atento pode ter notado que o Centro de Visitantes se chama tenente-coronel Ivo Lopes em vez de major Ivo Lopes. Acontece que militares que vem a óbito durante o cumprimento do dever podem receber uma promoção post mortem, que foi o caso do nosso querido Ivo.

O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o INPE, que desenvolve os satélites brasileiros, só foi fundado em 1961, e se chamava no começo Grupo de Organização da Comissão Nacional de Atividades Espaciais (GOCNAE). Como na nossa história o Brasil já tava lançando foguete orbital em 1958, acho bem razoável colocar a criação do INPE de maneira antecipada.

O texto, narração e direção deste episódio foram feitos por mim, Roberto “Pena” Spinelli.

Vozes:

Cassani por Sergio Sacani

Ada Rogato e Jamile por Juliana Vilela (Jujuba)

Lacerda por Marcelo Guaxinim

Jayme e Chico por Lennon Biancato Ruhnke

Zé por Fencas

Vozes extras por Pena, C.A., Willian Spengler, Vitor Moreira, Letícia Carvalho, Felipe Reis, Diogo Paschoal, Silvana e Vitor Moreira

Consultoria histórica por Willian Spengler, Cesar Agenor F. da Silva e Fencas.

Consultoria técnica por Lennon Biancato Ruhnke

Revisão por Silvana Perez

Edição e mixagem por Felipe Reis.

Vinheta por Vitor Moreira

E a distribuição é do portal Deviante.

VAI FILHÃO

O Brasil Vai Pro Espaço #10 Começa a Corrida

15 de Dezembro de 2023, 21:45
Por: Pena

Este é um conteúdo em formato podcast, mas, se preferir, pode acompanhá-lo com o texto e imagens a seguir.

Para ver todas as imagens deste episódio, entre nesta galeria.

Capítulo 1 – O Resgate

Jayme inicia o protocolo de emergência e a equipe de busca é acionada.

O primeiro passo era identificar o local exato do acidente. 3 aviões de reconhecimento sobem aos céus, dentre eles está um T-6 pilotado pela própria Ada. Ela insistiu muito em participar da equipe de busca e, com seu histórico de 213 missões de patrulha para a FAB e sua habilidade única de voo visual, Lacerda não tinha motivos para impedi-la. Após 3 horas de patrulha, é ela que reporta:

 Alcântara, T-6 1428, avistei um foco de incêndio na mata, possível local da queda do jato. Coordenadas 3,22 S; 44,43 W.

Fazer um resgate em mata fechada é muito complicado, ainda mais naquela época. Para você ter uma ideia, a Força Aérea só tinha 3 helicópteros, que ficavam no Rio de Janeiro. Requisitaram um deles, mas levaria dias até chegar no Maranhão. Enquanto isso, acionaram um hidroavião Catalina baseado em Belém, que deixou uma equipe tática do exército nas margens do rio Mearim, a 30km do local.

No fim daquele dia, com muito esforço, os patrulheiros encontraram os destroços do Goitacá, mas não havia sinal do Ivo por perto. O seu paraquedas poderia ter caído numa área a quilômetros de distância dali.

Passam-se dois dias sem sinais de Ivo. As rondas aéreas continuam, mas somente no terceiro dia, com a chegada do helicóptero, é que finalmente conseguem avistar um paraquedas rasgado entre a copa das árvores.

Na tarde do terceiro dia a equipe do exército escala aquela árvore para encontrar um Ivo sem vida, enrolado no paraquedas, com o peito perfurado por galhos e uma fratura nas pernas.

Parece que ele se feriu feio na queda e não conseguiu se desvencilhar do paraquedas. Com o pulmão comprometido e uma hemorragia interna, só lhe restava aguardar um resgate milagroso, que não chegou a tempo. Percebendo que não resistiria mais, Ivo escreveu duas cartas, uma para sua família e outra para Ada.

— Minha cara Gaivota Solitária. Se estiver lendo isto é porque eu terei feito meu último voo…

— Não! Eu não quero ler isso. Desculpa, Ivo, mas eu não consigo.

Ela dobra a carta e a coloca no bolso do macacão. Já sentia uma culpa gigante sobre seus ombros, pois ela havia declinado daquela missão para continuar com os testes do novo motor do Apoena. 

— Se eu tivesse cumprido minha escala, Ivo estaria vivo. Era para EU estar naquele voo.

Ada, ninguém tem culpa, foi um acidente. Ada? Ada?

O clima na base de Alcântara ficou muito pesado, uma sombra pairava sobre cada um. Ivo, com sua alegria contagiante e seu sotaque acolhedor, era querido por todos e sua falta era sentida profundamente. O programa espacial, com tantos lançamentos de sucesso e tantos voos espetaculares, tomava um golpe duro, um revés que ninguém esperava.

O Brasil todo comentava sobre a morte de Ivo, com incontáveis declarações de carinho e uma enorme multidão presente em seu velório. Ele foi enterrado sob a bandeira do Brasil e as asas da FAB, com honrarias e disparos de fuzil.

Ao mesmo tempo, surgia uma nova comoção popular, impulsionada pelos tabloides, questionando se o programa tripulado era seguro o suficiente ou até mesmo necessário. Uma coletiva de imprensa foi chamada para conter os danos.

Todos sentimos muitíssimo pelo ocorrido, mas é importante esclarecer que o assento ejetável funcionou corretamente e o paraquedas se abriu como esperado. Foi uma fatalidade o fato do piloto se ferir gravemente no pouso.

— Dr. Richard, já houve dois outros pousos de emergência anteriores, em que uma fatalidade foi evitada por muito pouco. Esses aviões são seguros?

— Não, não são seguros. São aviões experimentais que são feitos para voar no limite. É por isso que os pilotos de teste tem que ser muito habilidosos, para lidarem com problemas que aviões normais não tem.

É…, só para esclarecer, os aviões são seguros dentro do possível. Nada diferente do que os outros países fazem. E, lembrando, a morte do major Ivo não foi por problemas no sistema de segurança.

— E você Ada, como se sente com tudo isso? Considerando os recentes incidentes com explosão de motor, falhas no trem de pouso e capotagens, você ainda tem confiança em voar?

— Quando eu me inscrevi no programa, deixaram claro para mim quais eram os riscos. Sim, o Richard me disse a mesma coisa que falou pra vocês “os aviões não são seguros”. E ainda assim eu decidi me inscrever. Ninguém me forçou a nada e eu continuo escolhendo, a cada dia, pilotar aqueles aviões. Eu nasci para voar, é nisso que eu durmo e acordo pensando todos os dias. Durante a minha vida atravessei montanhas, florestas e desertos. Voei até o limite do norte e depois fui ao extremo sul. Hoje subi mais alto que todo mundo, mas isso não é suficiente, os americanos vão tentar um novo salto semana que vem. Caros jornalistas, a minha vida eu doei para o céu, assim como o Ivo, e a pior coisa que pode nos acontecer não é morrer, mas nos impedir de voar. Com licença agora, pois eu tenho que me preparar pra minha próxima missão.

Não havia como continuar a coletiva depois daquilo. Ada era uma força tão poderosa que apequenava tudo ao redor. Aquele discurso contagiou de tamanha maneira o Brasil que houve um recorde de inscritos para a seletiva do novo piloto de teste. Centenas de homens e dezenas de mulheres se candidataram para a vaga, a Jamile não dava conta de registrar todos aqueles pedidos.

— Jesus amado, eu tenho certeza que tem mais carta aqui do que o Brasil tem de piloto de avião.

Não era só isso, os feitos e palavras de Ada Rogato viriam a inspirar toda uma geração de garotas que cresceriam sabendo que uma mulher podia ser quem ela quisesse.

Capítulo 2 – O Salto

Enquanto a equipe do Zé termina de instalar o novo motor no Apoena, Ada fica ajudando na avaliação dos candidatos a piloto de teste. Com a quantidade enorme de inscritos, eles puderam pré-selecionar 30 aviadores muito habilidosos e a disputa foi extremamente acirrada. No fim, quem se destacou mais, principalmente nos testes de pilotagem, foi um jovem prodígio da FAB de 28 anos, o capitão gaúcho Francisco Santos.

— Seja bem vindo, novato!

— Mas que barbaridade! Que honra, Dona Rogato! Chega me arrepiar as melenas de te conhecer!

— Não sei o que é isso, mas obrigada hahahaha!

—  Hahahah mas nem dê bola. Quando fico nervoso a língua véia parece que não para quieta dentro da boca.

Nesse meio tempo, chegou a notícia que um piloto americano havia cruzado a barreira dos 70km, com 73.200m de altura, voando um avião-foguete com asas pra frente e canards, porém havia falecido no retorno, quando as asas se partiram durante o mergulho.

No dia 7 de abril de 1957, Ada embarcou no Apoena equipado com o novo motor, o XBR-11, que era mais sedento que a versão anterior, consumindo 9,2 litros de álcool e 8,2 litros de oxigênio líquido por segundo, para criar uma força de 4 toneladas de impulso.

— Boa sorte, Ada. Lembra que agora você só tem 3 minutos e 42 segundos de queima, em vez dos 5 minutos que tá acostumada. Mas deve ser suficiente pra passar do gringo.

— Valeu Zé, brigada por tudo. Vou pra cima deles!

Ao se liberar do bombardeiro B-17 a 10km de altura, Ada liga o novo motor, que rapidamente a leva até 3.000km/h, quando ela puxa o manche com força para trás.

— Atenção pessoal, a nossa “Rainha do Ar” começou o “salto”, esse é o momento crítico da missão. A gente quer passar os americanos. Vamo Ada, você consegue. O Apoena acabou de cruzar os 40 km e tá acelerando, tá subindo…

O Apoena respondia muito bem e Ada estava confiante:

— Alcântara, cravei nos 68 graus, tudo nominal.

— Tudo certo, Ada. 

Ela tinha conseguido inclinar o Apoena numa subida de 68°, o valor exato que o Jayme calculou para passar dos 70km e ainda conseguir um mergulho seguro. Quanto mais na vertical você sobe, mais na vertical você desce e maior é o impacto da queda.

— Ada, teste de rádio, você copia?

— Alcântara, alto e claro.

— Ótimo, a nova antena consegue cruzar a ionosfera. Estou contigo até o final, Ada. Vai filhão!

O combustível termina aos 65km e o Apoena continua subindo.

— Tudo certo, tudo nominal galera. Os motores apagaram e agora a Ada tá subindo na banguela. 70km de altura, já é recorde brasileiro. Mas a gente quer mais, a gente quer bater os americanos, 71 … 72… falta pouco.

Nesse momento Ada começa a ouvir um chiado estranho na cabine.

— Ai, diacho de pavão atrapalhado! Alcântara, éee, temos um problema. A pressão da cabine tá baixando.

— Zé! Zéee! Vem aqui. Tem algum vazamento na cabine.

Ai porra. Ada? Quanto tá marcando?

— 0,7 Bar… 0,65.

— Abre o sistema auxiliar de oxigênio.

— 74km de altura, recorde pro Brasil, chupa Estados Unidos. Ada Rogato está fazendo história novamente, que momento incrível. Galera, atenção. O alarme de descompressão disparou, problema grave na cabine.

A 74km de altura, o ar era tão rarefeito que a vedação da escotilha não suportou e começou a ceder. Mesmo com os dois tanques de oxigênio liberando ar no máximo, a pressão continuava a cair.

— 0,2 bar, dificuldade de respirar.

— Ada, você precisa achar o vazamento, não tem outro jeito. São Longuinho São Longuinho… vamo de 3 pulinhos dessa vez vai?

Segurando o fôlego para não apagar, ela pega a flanela de limpar o vidro e a agita perto da escotilha. Alguns fiapos são atraídos para um ponto na direção da dobradiça.

— Achei!

— Fecha com silver tape.

Com a oxigenação baixando, ela luta para não apagar. O remendo com silver tape começou a fazer efeito e a pressão foi subindo lentamente.

— 0,4 bar… Deu certo, Zé!

— O alarme desligou! Ufa! Boa Ada. Vai controlando aí o vazamento, daqui a pouco você já tá de volta. 1, 2, 3.

— Galera, o alarme parou, parece que tá tudo bem com a nossa piloto. Ela conseguiu segurar o vazamento e o Apoena já tá voltando… o ponto mais alto foi 75.200m de altura. Momento histórico.

Conforme o Apoena baixava, o vazamento foi diminuindo até parar completamente. Durante o mergulho, nossa piloto veterana não teve dificuldades de trazer o avião para a horizontal, dessa vez só precisou suportar 8Gs por 20 segundos. O problema é que ela não tava encontrando a pista de pouso. O salto foi mais comprido do que o esperado e ela tinha passado em muito a base. Planando a 12km de altura, Ada faz uma curva de 180 graus e avista a pista quase no horizonte. Ela usa toda a sua habilidade de planador para encontrar a taxa ideal de descida, o que parece insuficiente. Procurando as rajadas de vento, ela vai surfando as correntes, buscando espremer cada metro a mais de distância conforme o avião vai caindo – ainda era insuficiente.

A 100m de altura, a cabeceira da pista estava a uns 300m de distância. Ada foi trazendo o nariz do Apoena para trás, para ganhar mais sustentação, perdendo velocidade, se aproximando perigosamente do limite de estol, quando o fluxo de ar descola da asa e o avião despenca. Mesmo tendo “amansado” o Apoena, agora ela estava exigindo demais dele. As rodinhas tocam no limite da pista, mas a instabilidade é tão grande que o avião gira. A asa esquerda se parte e o Apoena vai se arrastando de lado, até parar de barriga pra cima, igualzinho ao pouso do Ivo.

Naquele momento, Ada não conseguiu mais ignorar a morte do companheiro. Ela tava tentando esconder tudo aquilo num canto escuro da sua mente, até que aquele pouso arrancou as cortinas e trouxe Ivo pra perto novamente.

Colocando a mão no bolso do macacão, ela retira a carta, toda suja e manchada de sangue, em que se lia as palavras “para Ada Rogato”.

“Minha cara Gaivota Solitária. Se estiver lendo isto é porque eu terei feito meu último voo. Foram dois anos desde que aportamos juntos em Alcântara. Dois anos de aventuras aéreas, de desafios arrepiantes, de grandes feitos e de pousos espetaculares (os meus mais que os seus pois eu insistia em terminar de cabeça para baixo)”

— Agora você não é o único.

“Ada, sua destreza, coragem e paixão pelo céu não conhecem limites. Em nossos voos, vi em você não apenas uma companheira, mas uma verdadeira pioneira, uma força da natureza.

Agora, enquanto o silêncio da floresta me envolve e as estrelas brilham acima, sinto uma paz estranha. Talvez seja o céu se preparando para me receber, ou talvez seja apenas a tranquilidade de saber que você vai continuar, que seus sonhos seguem adiante, que seus voos chegarão mais e mais alto e, eu, de alguma maneira, poderei me realizar em ti.

Ada, minha cara Gaivota, eu tenho um último pedido, uma promessa que gostaria que você fizesse para mim: seja a primeira pessoa a chegar no espaço. Você sempre teve os olhos voltados para as estrelas, e eu não consigo pensar em ninguém mais merecedora para reivindicar o céu em nome de todos nós. Prometa-me, Ada, que você levará nossos sonhos além desta Terra, que cruzará a fronteira final e tocará o grande desconhecido.

Com todo o meu carinho e admiração,

Ivo Lopes”

— Eu prometo Ivo! Eu prometo.

Capítulo 3 – A Bunda da Formiga

Com seu novo voo, Ada trazia novamente o Brasil para o lugar mais alto no céu, só que a corrida para o espaço tava só começando. A descompressão da cabine foi importante para revelar algumas falhas de projeto que seriam melhoradas na próxima cápsula. O Apoena, porém, foi impedido de voar mais alto, 75km era o seu teto. Ele seria reformado e ainda serviria para outras missões, porém, seria necessário um novo avião-foguete para ir além. Também era preciso um novo jato para entrar no lugar do Goitacá, mas sua construção não começaria agora, pois nesse momento os engenheiros estavam focados em outra coisa: o foguete orbital.

Bom, pra ser honesto, não era exatamente no foguete, e sim na torre de integração. Para se construir um foguete daquele porte era preciso, antes, ter uma torre de 3 andares, toda equipada com guindaste, máquinas pesadas, tanques com propelente etc. Levou quase um ano para que os 102 engenheiros da base terminassem a torre de 40m, quando então se juntaram a eles mais 20 recém contratados para acelerar ao máximo a construção do novo foguete.

O Ano Internacional da Geofísica começava agora, em julho de 1957, e iria até o final de 1958 (ou seja, na verdade o Ano da Geofísica era de fato 1 ano e meio). E nesse período, 67 países se comprometeram em compartilhar dados científicos relacionados ao planeta Terra, como um esforço de cooperação para o avanço da ciência mundial e diminuir as barreiras entre os países. Para tanto, foram criados 3 bancos de dados mundiais, cada um contendo uma cópia de todos os dados gerados durante esse ciclo. Um nos Estados Unidos, um na União Soviética e um terceiro subdividido entre a Europa, Austrália, Japão e o Brasil. Juscelino conseguiu entrar nessa elite justamente por seu programa espacial, ao fazer uma promessa de que o Brasil lançaria um satélite antes do fim daquele período. Tanto os EUA quanto a URSS já haviam feito essa promessa também, era por conta disso que os russos estavam em Alcântara, para tentar fazer órbita antes dos americanos. Porém, quando Juscelino fez o mesmo anúncio, aquilo virou uma piada internacional. Claro que os avanços do Brasil eram inegáveis, principalmente no programa dos super aviões. Mas lançar um satélite era algo muito mais complexo. De qualquer maneira, para não soar um deboche, decidiram inserir o Brasil como um dos guardiões do banco de dados, na pendência da gente conseguir honrar tal promessa. Por isso, o programa do Foguete Orbital estava a todo o vapor, aquilo era questão de orgulho para JK.

E não é que os soviéticos saíram na frente? No dia primeiro de julho de 1957, assim que começou oficialmente o Ano Geofísico, um foguete enorme chamado R-7, que era, na verdade, um míssil adaptado, decolou da Base de Alcântara carregando um satélite chamado Sputnik (que significa satélite em russo, eles são muito criativos). O lançamento deu certo e assim os soviéticos inauguraram o placar. Os americanos reclamaram, dizendo que se não fosse a ajuda do Brasil eles nunca teriam conseguido e blablabla, mas, fato é que o Sputnik-1 cruzava os céus do mundo a cada 96 minutos, emitindo um bip que podia ser ouvido por qualquer radioamador do planeta. Aquilo foi um gol de mestre.

Meses depois, mais um gol soviético, ao lançarem a cadela Laika para o espaço, o primeiro animal a fazer órbita na Terra.

Em 6 de dezembro os EUA tentaram lançar seu primeiro satélite a bordo do foguete Vanguard, mas após 2 segundos da decolagem, os motores perderam potência e o foguete deu marcha ré, explodindo no solo.

Um mês e meio depois era a vez do Brasil. Contratando mais 58 engenheiros nesse período, o Brasil conseguiu um feito ao colocar na plataforma um lindo foguete de 22m de altura, dos quais 16m consistiam em um cilindro grande, de 2,15m de diâmetro, e o restante era um cilindro menor, de 1,25m, que terminava num cone pontudo. Seu corpo branco era adornado por faixas verticais azuis que subiam só até a metade de cada cilindro. Um anel dourado marcava a separação entre o primeiro e o segundo estágios, encimado por uma saia azul que fazia a junção entre o cilindro grande e o pequeno. No topo, o satélite brasileiro em forma de cone dourado, com o número 1 estampado, se projetava de uma coifa azul, feita para se abrir como uma flor e liberar o satélite no momento certo. No centro do foguete, sobre a parte branca, estava o logo vistoso da AEB, a Agência Espacial Brasileira, e na base, escrito na vertical, fulgurava o VAI FILHÃO com bandeira do Brasil separando o VAI do FILHÃO. Na competição de foguete mais bonito, o Brasil ganhava disparado.

Todo mundo da base queria ver o foguetão de perto, e claro que a Jamile não faria diferente:

— Olha aí, que foguete maneiro, tu que desenhou Jayme?

— Ah, oi Jamile. Foi. Eu e o Richard. Mas agora que eu vi você, me lembrei que falta por um nome nele.

— Ah, lá vem você. Por sorte ainda é 4 da tarde. Você já pensou em alguma coisa Zé?

— Só umas ideias. A gente primeiro tem que escolher o nome da classe do foguete, que é como se fosse o modelo de um carro. Esse nome é sempre indígena.

— To sabendo, eu que registro isso Zé.

— Ah, é verdade, foi mal. É que eu tenho que ficar explicando isso pra todo mundo: Arapuá é a classe do foguete, Garbosa é o nome daquele Arapuá específico. Mas… sei lá, tava pensando em Tupã, o deus do Trovão.

— Sei não Zé, aí amanhã a gente faz um foguete maior e vai chamar do quê? Vai acabar igual os americanos, fizeram um Júpiter, depois um Atlas… o que pode ser maior que um titã que carrega o planeta nas costas? Espertos são os soviéticos: R-1, R-2, R-3… já chegaram no R-7.

— Tem razão quatro-olho. Bom, a gente começou bem com Arapuá, a abelha. Depois o Laurare, marimbondo. Qual o próximo passo?

— Olha, vou dizer que fico olhando pro foguete e só consigo ver essa bunda enorme, parece uma Tanajura, sabe? Essas formigas com a bunda gigante? haha

— Hahah pior que parece mesmo, mas duvido que o Lacerda aceitaria colocar um nome por conta da bunda avantajada do foguete.

— E o que ele entende de tupi? É só falar que tanajura significa, sei lá, “rainha da tribo” ou qualquer coisa assim. Deixa comigo, hahah.

Na manhã do dia 28 de janeiro de 1958, a Tanajura 1 – Pioneira, estava sendo abastecida na Torre de Integração. Havia uma multidão nas proximidades, incluindo o próprio presidente do Brasil. Pensa na vontade política para fazer aquele foguete sair em apenas 3 anos. A parte mais complicada foi, obviamente, com os motores. O primeiro estágio era impulsionado por uma cópia do motor soviético RD-108, feita a partir da engenharia reversa de uma peça queimada. Foram dois anos de muito trabalho e muito dinheiro para começar a gerar os primeiros protótipos. E pra ser honesto, esse motor que tava embarcado na Pioneira, ainda era um protótipo: um motor só termina de amadurecer mesmo, depois de uma dezena de lançamentos.

Às 10 da manhã a Torre de Integração começou a andar para trás, deixando o foguete à mostra. Isso mesmo, não era o foguete que saía da casinha, era a casinha que saía do foguete.

— Estou impressionado, galera, a torre inteira tá se mexendo. Palmas para o Brasil, essa ideia é fantástica. Mover um foguete desse tamanho pode gerar um monte de problema, vai que solta uma solda, ou enverga um parafuso… Atenção, vai começar a contagem regressiva. 10, 9, 8, é o Brasil galera, a gente vai por um satélite em órbita antes dos americanos, 3, 2, 1… Vaaaaaaaai Filhãaaaaao…. partiuuuuuuuu. O motor acendeu, que bonito, tá subindo, 100 metros, 200 metros… opa, parece que tá reduzindo… o motor parece que deu problema, tá com pouca força. Ixi, Pioneira tá voltando, e agora começou girar, tá caindo de lado.

— Vai cair na plataforma, aciona Jayme.

— Ah, não acredito. Lá vai. Acionando detonação de segurança em 3, 2, 1.

Explosão.

Epílogo

Você ouviu o décimo episódio de “O Brasil vai pro espaço”, produzido pelo Scicast.

Os eventos narrados aqui, embora fictícios, utilizam como base fatos e pessoas reais da história do Brasil e do mundo. Em especial, neste episódio:

O recorde americano de 73km de altura, não ocorreu na realidade. Nessa época, o programa americano de aviões experimentais estava testando diversos modelos para aplicações diferentes e não estavam focando somente em chegar mais alto. O recorde que eles tinham de 7 de setembro de 1956 era 38km de altura com o X-2. Porém, acredito que no momento que o Brasil chega nos 69km, os EUA ficariam muito mordidos e tentariam de tudo para bater o recorde brasileiro. Na história real, os americanos só passariam dessa marca na década de 1960 com o avião X-15.

Aposto que muita gente ficou em dúvida se já existia silver tape em 1957. Sim, existia. A fita foi criada durante a segunda guerra para resolver um problema de embalagem. Uma funcionária de uma fábrica de munição, a Vesta Stoudt, estava incomodada em usar cera para lacrar as caixas, pois os soldados tinham muita dificuldade em abrir depois, e ficavam expostos no meio da batalha tentando abrir a caixa de munição. Ela teve a ideia de criar uma fita emborrachada à prova d’água pra substituir a cera. Seu supervisor gostou da ideia, mas achava que seria muito complicado. Ela, então, enviou uma carta para o presidente Roosevelt explicando em detalhes como seria possível fazer tal fita. Ele ficou tão empolgado que mandou a receita para Johnson & Johnson desenvolver o que eles chamam de duct tape, e a gente chama de silver tape. Curioso como a gente criou um outro nome em inglês que não é o que eles usam. É igual pendrive, que lá fora o nome é flash drive. Logo os soldados perceberam que a tal duct tape era muito útil para remendar botas, tendas e reparar qualquer coisa. Então é bem possível que já se usasse essas fitas por aqui 14 anos depois do seu invento.

O Ano Geofísico Internacional foi um evento real que teve origem no Ano Polar Internacional. No final do século 19 a região dos pólos era muito pouco explorada então houve um esforço internacional para, durante o ano de 1882-83, 11 países fizessem diversas medições em conjunto para entender os fenômenos do Ártico.

Décadas depois, logo após o fim da primeira grande guerra, efeitos estranhos foram sentidos nas linhas de telégrafo, rádio e telefone, o que convenceu os cientistas de que a natureza dos fenômenos eletromagnéticos da Terra precisavam ser melhor compreendidos. Assim realizou-se um Segundo Ano Polar Internacional entre 1932-33 onde 44 países colaboraram para mapear a Ionosfera e realizar medições magnéticas no ártico. O problema é que grande parte desses dados acabou se perdendo devido à Segunda Guerra Mundial.

Por isso, em 1957-58, quando realizou-se o novo esforço de colaboração científica para mapear melhor os fenômenos da Terra, resolveram criar 3 bancos de dados, cada um contendo uma cópia de todos os dados obtidos. Na história real o Brasil participou do Ano Geofísico Internacional, mas não foi agraciado com uma dos bancos de dados. Na nossa história, porém, acredito que fazia sentido o Brasil conseguir esse destaque, desde que pudesse cumprir a promessa de Juscelino.

O primeiro satélite do mundo foi, de fato, o Sputnik I mas, na história real, ele foi lançado em 4 de outubro de 1957. Como, na nossa história alternativa, os soviéticos lançaram de Alcântara e tiveram bastante vantagem energética por conta disso, achei razoável colocar o lançamento do Sputnik alguns meses antes, logo no início do Ano Geofísico.

Já a tentativa do primeiro satélite americano, o Vanguard 1A, ocorreu exatamente como relatado no episódio, e o vídeo desse fracasso pode ser visto no youtube, segue link: https://youtu.be/oULJDQCYmdw?si=ub955q_L1R3oPGgE&t=23

A Torre de Integração que se move foi totalmente inspirada na Torre do foguete brasileiro VLS, que explodiu em 2003, evento que acabou dando origem a este podcast que você tá ouvindo. Eu resolve modelar a torre quase igualzinha a original, como uma forma de homenagem, e porque eu acho a ideia realmente fantástica. É a cara do Brasil inventar algo assim. Eu só não fiz ela idêntica porque eu acho a original meio feia, então dei uma garibada. Mas todos os elementos estão lá, as 3 plataformas basculantes, a bandeira do Brasil na marquise, as rodinhas, enfim, fiz bem caprichado. Você pode ver as imagens no post desse episódio, só acessar o link que aparece no seu agregador.

Por fim, o nome Tanajura, como é chamada a rainha das formigas saúvas, significa em tupi “o senhor da nossa aldeia”. Então, no final, o Zé até que acertou ao inventar pro Lacerda que significava “rainha da tribo”. Que coincidência curiosa, não é?

O texto, narração e direção deste episódio foram feitos por mim, o Pena.

Vozes:

Cassani por Sergio Sacani.

Ada Rogato e Jamile por Juliana Vilela (Jujuba).

Lacerda por Marcelo Guaxinim.

Jayme e Chico Santos por Lennon Biancato Ruhnke.

Zé por Fencas.

Ivo Lopes por Felipe Queiroz.

Vozes extras por Vitor Moreira, Silvana Perez e Cesar Agenor F. da Silva.

Consultoria histórica por Willian Spengler, Cesar Agenor F. da Silva e Fencas.

Consultoria técnica por Lennon Biancato Ruhnke.

Revisão por Silvana Perez.

Edição e mixagem por Felipe Reis.

Vinheta por Vitor Moreira.

E a distribuição é do portal Deviante.

Lembrando que, como esse programa espacial está sendo simulado num computador, temos imagens. Você vai poder ver o salto da Ada e a Tanajura explodindo. É só clicar no link aí no seu agregador. E aproveita para escrever um comentário lá sobre o que achou.

Muito obrigado por ouvir, até semana que vem.

O Brasil Vai Pro Espaço #09 Gritos em Alcântara

8 de Dezembro de 2023, 21:43
Por: Pena


Este é um conteúdo em formato podcast, mas, se preferir, pode acompanhá-lo com o texto e imagens a seguir.

Para ver todas as imagens deste episódio, entre nesta galeria.

Capítulo 1 – O Novo Motor

O ano de 1956 foi chamado de Ano Santos Dumont, pois marcava o cinquentenário do voo do 14 bis. Com o sucesso em popularidade do Programa Gaviões e da nossa Rainha do Ar Ada Rogato, Juscelino queria trazer mais atenção ainda para os super-aviões como forma de celebrar o Ano Santos Dumont. Lacerda achava uma temeridade, pois um projeto experimental desse tinha uma chance considerável de gerar acidentes, mas foi voto vencido. O povo queria muito acompanhar sua aviadora preferida, ainda mais nesse ano tão simbólico para a aviação brasileira. Tava ficando comum jornalistas espiando com suas câmeras fotográficas pelas cercas da Base de Alcântara, tentando capturar uma foto de capa ou algum furo de reportagem.

Apesar disso, era maio e ainda não tinha ocorrido nenhum voo. Ada estava muito impaciente:

— Eu achei que tinha sido contratada como piloto de teste, não como turista.

— Tô contigo nessa, Ada. Já faz 4 meses que eu saí do hospital e não aguento mais ficar no chão, a gente não nasceu pra isso.

— Não é possível que esse motor não fica pronto nunca. Assim os gringos vão passar na nossa frente.

Richard havia recebido uma ligação de um colega de dentro do National Advisory Committee for Aeronautics, o órgão que se tornaria a NASA em alguns anos, dizendo que um avião-foguete com asas viradas para frente e canards na parte dianteira estava em construção. Sim, os americanos estavam claramente copiando o desenho de Richard. Não aceitariam ficar para trás no recorde de velocidade e altura.

Só que o Apoena ainda estava sendo remontado, com melhorias na cabine e na fuselagem. Os dados coletados a partir do “Salto da Fé”, que foi o apelido que deram para o voo histórico de Ada, já estavam rendendo frutos.

Mas e o outro avião, o Goitacá? Você deve estar se perguntando. Richard decidiu fazer uma melhoria nos motores do jato: instalar um pós-queimador. O pós-queimador, ou afterburner em inglês, era um conceito que já estava sendo experimentado desde a segunda guerra e vinha sendo incorporado aos poucos nos novos motores turbojatos.

A ideia é a seguinte. Lembra que eu falei que um motor a jato nada mais é que uma caixa com um ventilador socando ar na parte da frente e, depois da queima da gasolina, sai um jato de ar quente muito rápido pela parte de trás? Acontece que, durante a queima da gasolina, não dá para usar o máximo de combustível possível, ou a temperatura seria tão alta que derreteria o próprio motor. Isso quer dizer que, na saída de ar do motor, ainda existe muito oxigênio disponível que não foi queimado. Alguém um dia pensou “E se a gente jogasse mais gasolina na saída do motor e queimasse esse oxigênio que tá dando sopa?”. E assim nasceu o pós-queimador, que é exatamente isso, uma segunda queima após a primeira queima.

A vantagem do pós-queimador é adicionar ainda mais força no motor, pois os gases saem com ainda mais velocidade. A desvantagem é que se gasta muita gasolina no processo e esquenta muito. Então o pós-queimador pode ser acionado apenas em certos momentos do voo, normalmente para decolar e, numa batalha aérea, para conseguir fazer manobras mais arrojadas e ter alguma vantagem sobre o inimigo. No caso do Goitacá, a ideia era conseguir fazer o avião voar mais rápido e chegar em Mach 2, ou duas vezes a velocidade do som.

Capítulo 2 – Ivo Lopes

Finalmente, no dia 18 de maio de 1956, o S-2 Goitacá estava na pista, com seus motores Avon 107 com pós-queimadores, pronto para o teste. Ada faria a estreia, pois ela já tinha voado aquele jato antes, mas Ivo estava desesperado:

— Por favor comandante, eu fiquei 4 meses no hospital sem voar e agora mais 5 meses esperando o avião ficar pronto. Me deixa assumir?

— Não acho uma boa, major. Com o pós-queimador, o S-2 pode tá mais arisco. A Ada já tá acostumada.

— Mas eu já piloto jato faz tempo, tenho dois anos com o Meteoro.

— Hum, Ada, o Ivo tem um ponto, mas você que decide. Desde que ninguém se arrebente, tanto faz pra mim.

— Aahh, poxa, eu também tô esperando tanto por esse momento…

— Imagina então meu caso, minha querida. 10 meses sem entrar num cockpit. E o próximo voo é com o Apoena, daí vai você.

— Tá bom, Ivo. É, acho que fiz amizade com o Apoena. Cuida do Goitacá então. Vai filhão!

Ivo emibarca no S-2 e na decolagem já deu tudo errado. O pós-queimador  funcionando a toda potência aumentou muito a pressão sobre o trem de pouso. No momento que o jato empinou para sair do chão, a pressão nas rodinhas de trás foi tão grande que  explodiu os pneus. O Goitacá conseguiu ganhar voo, mas os problemas estavam só começando. 

 Ivo, Ivo, o que houve? Que barulho foi esse?

— Alcântara, temos um problema. Parece que o sistema hidráulico do trem de pouso traseiro parou de funcionar, não tá subindo.

— Aqui da torre dá pra ver, os pneus explodiram. A explosão deve ter arrebentado alguma mangueira. Veja se vai no manual.

— Aaahh, aaaaah… sem chance, tá emperrado.

— Deixa eu ver aqui como a gente segue.

— Ivo, Lacerda aqui. Aborta a missão, aborta, aborta! Você vai ter que ejetar. Não tem como pousar com essas ferragens saindo por baixo do Goitacá.

— Mas senhor, se eu ejetar a gente perde o avião.

— Eu sei, mas não tem o que fazer. Não dá nem para pousar de barriga na água.

— Hum, major… Então deixa eu cumprir a missão primeiro. Já que a gente vai perder o jato, pelo menos vamos tirar algo de valor disso.

— Jayme aqui. Ivo, acho que não dá para você chegar em Mach 2 desse jeito, o arrasto extra vai atrapalhar o regime supersônico.

— Ora, se não der tudo bem, é só eu ejetar. Deixa eu tentar pelo menos.

— Tá, Ivo, mas vai com calma, não vai se colocar em risco.

— Pode deixar, comandante!

Aplicando potência no motor, Ivo leva o Goitacá até 18km de altura, quando liga os pós-queimadores no máximo. E não é que esse pós-queimador era bom mesmo? Mesmo com duas varetas se arrastando no vento, o Goitacá alcança Mach 2, mas não parece nada estável: ele treme e balança absurdamente. Ivo precisa segurar os controles com toda força para manter o jato minimamente alinhado, e agora começam a contar os 5 minutos, que é o tempo mínimo para os corpos de prova na fuselagem do avião coletarem os dados de pressão aerodinâmica.

A cada 2 segundos em média o avião balança de um jeito forte que obriga Ivo a fazer o movimento contrário no manche, para impedir que ele saia do controle, o que, nesta velocidade, significa uma ruptura da fuselagem tão rápida que seria morte certa. Esses serão os 5 minutos mais longos de sua vida.

— Ahh, aaaaaa, vamooo, vaaaaa mo!

O suor escorre como uma cachoeira. A cada solavanco, Ivo pisa em um dos pedais e inclina o manche. Nem mesmo terminou de corrigir o movimento, já precisa reagir ao próximo, e ao próximo. O barulho na cabine é ensurdecedor.

— Alcântara para Ivo, copia? Ivo?

Ivo mal escuta. Sua atenção nos controles só é compartilhada com o velocímetro e o cronômetro. Após 2 minutos Ivo começa a sentir dores nos ombros. Mais um minuto e ele passa a sentir cãibras no pescoço.

— Aaaah, aaaaah!

Fazendo um esforço prodigioso, Ivo mal acreditou quando o cronômetro atingiu os 5 minutos. Reduzindo o motor, o Goitacá baixa do regime supersônico e volta a ficar estável, agora ele podia falar no rádio:

— Alcântara, missão cumprida, preparando para o pouso.

— Ivo. Que pouso?! Tá maluco? Você tem que ejetar.

— Comandante, eu pensei aqui, se eu ejetar, todos esses dados serão perdidos, além do avião. Eu já pousei avião pior que esse, deixa eu tentar.

— Não Ivo, sem chance. Não dá para arriscar, sua vida é mais importante que tudo isso.

— Comandante, eu consigo, confia em mim.

— Não, Ivo, você tem que ejetar… Ivo?… Ivo? Puta merda… só tenho piloto kamikaze nessa base, não é possível! Jayme, prepara o pouso de emergência.

A equipe dos bombeiros jogava água na pista, para diminuir o atrito, quando o Goitacá aponta no horizonte. Ivo já havia esvaziado todo o combustível, para deixar o jato mais leve e evitar um incêndio. Ele, agora, aciona os flaps no máximo, para aumentar o arrasto e reduzir a velocidade. O avião vem com o nariz para cima, planando, sangrando o excesso de velocidade até quase entrar em estol. Nesse momento, as ferragens do trem de pouso tocam na pista, lançando faíscas compulsivamente e forçando o bico para baixo, o que faz a rodinha da frente, a única funcional, se apoiar sobre o asfalto. O Goitacá vai deslizando, rabeando, escapando de traseira. Ivo aperta os pedais, tentando conter o movimento errático do avião. É tudo muito rápido, muito difícil, mas, incrivelmente, ele tá segurando, de algum jeito parece que vai dar certo. A  velocidade vai diminuindo enquanto o avião gira em torno de si mesmo como um patinador no gelo fazendo rodopios. Todos os observadores estão congelados, cerrando os punhos ou roendo as unhas. O problema é que, nessa dança maluca, a aeronave vai se aproximando perigosamente da borda da pista. De repente, a roda da frente passa por cima de uma lâmpada de sinaliza ção, o que lança o bico para cima e faz a nave girar, indo parar de barriga para cima sobre a grama. Pelo menos, dessa vez, o avião está com todas as asas no lugar e o piloto com todas as costelas intactas.

— Alcântara, major Ivo comunicando… pouso finalizado!

Enfim, o êxtase. Todos rompem em emoção, se abraçando, comemorando, enquanto os jornalistas metralham seus cliques por entre as telas do alambrado.

Ivo é considerado herói. Uma cerimônia foi realizada na base para lhe entregar a “Medalha do Mérito Aeronáutico no Grau Cavaleiro”. Se Ada era a Rainha do Ar, Ivo Lopes entrava no rol da realeza como o Cavaleiro Alado.

— Bonita medalha Ivo, parabéns!

— Brigado, querida, acho que consegui me redimir finalmente do fiasco anterior.

— Mas parece que continua insistindo em pousar de cabeça pra baixo, hehe.

— É verdade, hehe.

— Quem sabe eu tento isso no meu próximo voo, vai que ganho uma medalha também.

Capítulo 3 – A Manobra

Duas semanas depois, Ada embarca num Apoena totalmente reconstruído e atualizado. O objetivo era cruzar os 50km. Foi um esforço enorme para ela cortar os motores, várias vezes passou pela sua cabeça continuar subindo, mas, ela conseguiu se controlar e chegou até os 54km, para felicidade do Lacerda. O pouso foi suave e dessa vez ela nem precisou cantar. Parecia que tinha desvendado o Apoena.

Na sequência foi o Ivo, pilotando o Goitacá: outro voo para Mach 2 por 5 minutos, sem maiores contratempos. A pesquisa para entender a aerodinâmica nessa faixa de velocidade estava só no começo, seria preciso uns 40 minutos no total para os cientistas coletarem todos os dados necessários. O problema é que o Goitacá, mesmo tendo 20 minutos de combustível, só conseguia 5 minutos de Mach 2 por voo. E o motivo era o seguinte, visualiza esse trajeto:

O Goitacá decola e segue em frente, subindo o mais rápido possível até a altura de 18km. Com os pós-queimadores no máximo, ele acelera até cruzar a barreira do som. Nesse momento o avião já tá muito longe da pista. Se continuar em linha reta, não vai ter combustível para voltar. Então o piloto faz uma curva de 180, perdendo velocidade no processo, e só então, pode retomar a potência máxima até chegar no Mach 2. Após os 5 minutos, o Goitacá não apenas já voltou todo o caminho como já ultrapassou a base (esse é o problema de voar em Mach 2… em 5 minutos você avançou 200km). E  agora, o avião já precisa dar meia volta e retornar, ou não vai ter combustível para pousar depois. Ada tava incomodada com esse perfil de voo. Dos 20 minutos só dava para aproveitar 5. Será que não tinha outro jeito? Bom, ela tinha uma ideia.

Perfil de voo padrão do Goitacá para ter 5 minutos de Mach 2.

Duas semanas depois, Ada decolava de Alcântara a bordo do Goitacá, mas, em vez de seguir em linha reta como indicado pelo perfil de voo, ela iniciou uma curva suave para a esquerda.

— Ada, deu algum problema no avião? To vendo que você tá desviando da rota.

— Alcântara, tá tudo bem. Vou tentar uma outra manobra.

— Hum, Ada, acho que o Lacerda não vai ficar muito contente com isso.

Tudo que o Lacerda queria eram dois pilotos disciplinados. Ao invés disso, tinha os melhores pilotos que jamais imaginou ter, só que eles faziam o que queriam. Por que ele não chamou o tenente Pontes? Aquele era um puxa-saco de primeira, nunca sairia da linha.

Mantendo a curva para a esquerda, Ada ligou os pós-queimadores e foi acelerando o avião, enquanto controlava o leme e os ailerons para sustentar a inclinação ideal.

 

Em 2 minutos, o jato chegou em Mach 2, mas dessa vez ele estava fazendo um círculo enorme.

— Vamo, Goitacá, um pouco mais fechado… isso… parece bom. Se tudo der certo, a gente vai voltar para a base no final dessa curva.

Era uma manobra muito inteligente. Se ela conseguisse manter o Goitacá em Mach 2 durante toda essa curva, teria 15 minutos de dados coletados em vez de apenas 5 min.

Manobra proposta pela Ada, para dar 15min de Mach 2 ao Goitacá.

Claro que ela conseguiu. Ao pousar, todos aplaudiam sua ousadia, menos Lacerda, que a chamou para a sala dele.

— Ada, isso tem que parar, você e o Ivo não podem mais continuar a desrespeitar as regras.

— Comandante, eu sinceramente não entendo. Acabei de criar uma manobra que vai acelerar a pesquisa em 3 vezes, e tudo que o senhor tem a dizer é que eu tô errada? Outro dia bati o recorde mundial e saí com uma advertência.

— Você é uma piloto excelente, mas não é assim que as coisas funcionam num programa. Não dá para sair improvisando, Ada! Eu vou ter que fazer algo drástico, mas não tenho escolha. Você vai ficar sem voar até o final do ano.

— O quê… não… Lacerda… o que você tá… não, não faz isso. Por favor, não.

— Eu tava evitando chegar nesse ponto, mas sinto que é o único jeito. Você vai continuar no programa, é só uma pausa para esfriar a cabeça.

— Não… eu… eu VOU voar!

— Não, não vai, Ada. Melhor parar de discutir ou isso pode ficar pior.

— Ai, como eu pude ser tão burra. Claro que a corda ia estourar do lado da mulher.

— Do que você tá falando? Isso não tem nada a ver com o fato de você ser mulher.

— Aé?! Então agora é você que vai escutar Lacerda. Quando eu fiz o voo de 70km com o Apoena eu tava seguindo exatamente as ordens. O perfil dizia: passar dos 40km, e foi o que eu fiz, não tinha teto nenhum. Faltou bom senso? Faltou. Eu podia ter morrido? podia. Mas não morri, e, no final, além de bater dois recordes mundiais, consegui um feito pro avanço do programa. Só que quando o Ivo tava voando e o senhor mandou ele ejetar, ele se negou. Não foi falta de bom senso, ele claramente desobedeceu uma ordem expressa sua. Mas, no final, ele ganhou uma medalha por isso! É Lacerda, então acho que tenho bons motivos para achar que o problema é mais o que falta no meio das minhas pernas do que outra coisa.

— SAI DAQUI AGORA!

— Pode apostar que vou!

Lacerda ficou vermelho de raiva. “Quem ela pensa que é pra falar comigo desse jeito?”

Ada saiu correndo, com os olhos cheios d’água.

— Ada… Ada? Você tá… bem?

 

Mais tarde, Zé vai até o quarto dela.

— Boa tarde, Ada…

Ela estava fazendo as malas.

— Acabou pra mim, Zé. Coloquei o dedo na cara do Lacerda.

— Eita… é…  mas… você tá bem? Quer falar sobre isso?

— Não, não tô bem… e não tem o que falar. Ele me cortou depois da minha manobra.

— Nossa, mas… por que ele faria isso?

— Porque eu sou um babaca!

— Major?… éeeee com licença.

— Ada… escuta… você tem razão. Eu fui um covarde. Eu devia ter punido o Ivo quando ele desrespeitou minha ordem. Acabei caindo no discurso do ministro e da imprensa. Eu não queria dar aquela medalha, e agora vejo como essas pequenas decisões fazem toda diferença… Depois, quando você saiu do perfil de voo, comecei a perceber que eu tava perdendo completamente a mão. E sim, eu fui covarde novamente por descontar tudo em você. Ada, você é a melhor piloto que já vi na minha vida, por favor… não vá embora. Me desculpe por tudo. O que eu mais quero é ver você voando.

Ada larga as roupas e olha para ele longamente. Então… lhe dá um abraço.

Capítulo 4 – Mayday

Passado esse alvoroço, as coisas vão voltando ao normal no Centro de Alcântara. Ivo faz um novo voo com o Goitacá, seguindo a manobra da Ada, o que é o suficiente para coletar os 15 minutos de Mach 2 que faltavam. O avião começa a ser preparado para a nova etapa.

Em outubro, os soviéticos lançaram o primeiro foguete da sua plataforma exclusiva em Alcântara. Era um foguete mediano chamado R-1, um pouco menor que o Laurare e, até onde puderam perceber, fez um voo com sucesso. Os brasileiros não tinham acesso aos detalhes da missão, mas provavelmente foi um voo de teste para avaliar a capacidade deles de montar um foguete por aqui, testar todos os equipamentos da torre de lançamento, telemetria etc.

Começou a ser comum os pilotos e engenheiros brasileiros almoçarem com os russos no refeitório principal da base, enquanto ensaiavam uma comunicação por sinal ou às vezes em francês. Naquela época, a língua oficial para comunicação internacional era o Francês, que era aprendido nas escolas brasileiras, além do latim. Com o tempo, porém, os soviéticos foram aprendendo português e, os brasileiros da base começaram a arranhar umas palavras em russo. Muitos se aproximavam de Ada pedindo autógrafo, e ela se divertia com a companhia dos estrangeiros.

A vila de Alcântara foi crescendo rápido, para abarcar todos os russos e ucranianos que migraram para cá. Já estava ficando até comum os restaurantes apresentarem cardápios bilíngues.

Em setembro, o projeto do foguete orbital brasileiro ficou pronto. Praticamente todos os 102 engenheiros que trabalhavam na base nessa época foram alocados para a construção desse foguetão gigante de 22m de altura e 52 toneladas.

Em outubro, Ada fez mais um voo com o Apoena. Parecia que a equipe do Zé tinha feito um ótimo serviço, pois o salto de 65km ocorreu sem nenhum problema, muito mais suave que aquele de 69km meses atrás.

Em novembro foi a vez de Ivo pegar o Goitacá para atingir a incrível marca de 2.500km/h. Os motores aqueceram bastante, mas aguentaram.

No final do ano de 56, Ada ficou na base durante o natal ajudando a testar o novo motor que os engenheiros estavam criando. Era um protótipo a partir da engenharia reversa do motor do Apoena, o XLR-11. Chamaram de XBR-11, esse BR de “feito no brasil”. Só que o negócio tava enroscado, não tava saindo no prazo, de forma que, quando chegou março de 57, a Ada, que iria fazer um voo com o Goitacá, acabou declinando para continuar focada nos testes do protótipo. Ivo aceitou de bom grado a missão: acelerar o jato até 2.700km/h por 3 minutos.

Assim, no dia 7 de março, o Goitacá levantou voo para sua 7ª missão e tudo estava indo bem até que, chegando perto dos 2.700km/h, Ivo ouviu um estrondo gigantesco e o avião imediatamente perdeu o controle.

— Mayday, mayday, mayday. Goitacá em espiral descendente, 18.000m, tentando retomar.

— Ivo, qual sua localização?

— 150, 120 km ao sul da base. Houve uma explosão nos dois motores. Consegui retomar, mas perdendo altitude rápido.

Os dois motores Avon-107 com pós-queimadores explodiram.

O calor intenso gerado pelos pós-queimadores, somado ao atrito com vento, fez o motor direito explodir, o que levou o esquerdo a explodir também. Embora o resto do avião não tenha sofrido avarias, sem o peso dos motores gigantescos atrás o Goitacá ficou com o nariz pesado. Não havia jeito de puxar ele para a horizontal.

— Mayday, mayday, impossível planar, nariz pesado, nariz pesado. Preparando para ejetar.

— Já tamo iniciando o protocolo de emergência. Boa sorte, Ivo.

Ivo puxa o punho sobre a cabeça, que libera a cúpula do cockpit. Depois, puxa uma alça entre as pernas que aciona uma carga de combustível sólido abaixo do assento que o impulsiona para cima numa força de 9G.

O paraquedas se abre com sucesso e Ivo está agora a 2.000m de altura, flutuando sobre uma floresta tropical a 120km de distância da base. Ele procura algum lugar para pousar, mas só vê árvores por todos os lados.

Epílogo

Você ouviu o nono episódio de “O Brasil vai pro espaço”, produzido pelo Scicast.

Os eventos narrados aqui, embora fictícios, utilizam como base fatos e pessoas reais da história do Brasil e do mundo. Em especial, neste episódio:

Durante 1956, o chamado Ano Santos Dumont, a Ada da vida real resolveu fazer um circuito aéreo por todo o Brasil, pousando nas capitais de todos os estados e ainda sobrevoando um longo trecho da selva amazônica chamado de “Inferno Verde”. Ela foi a primeira pessoa a fazer essa travessia num avião pequeno que nem rádio tinha. Até hoje, mesmo existindo um sistema de Vigilância da Amazônia, esse trecho atemoriza muitos aviadores.

Ao todo, o circuito totalizou mais de 25.000km em 163 horas de voo, mais um feito incrível para a carreira de Ada Rogato. Claro que na nossa alternativa a Ada acabou perdendo essa oportunidade porque ela estava em Alcântara batendo recordes mundiais. Tá desculpado né?

E aproveitando o assunto, quero dizer que a gente já gravou um Scicast sobre a vida da Ada contendo em detalhes todos os seus feitos e ficou sensacional. Deve sair em breve, fiquem de olho.

Sobre o ensino de línguas estrangeiras no Brasil, embora o inglês estivesse presente nos currículos desde o século 19, o latim e o francês recebiam mais tempo em sala de aula, este último pela sua importância internacional. A partir da Segunda Guerra e com a crescente influência americana, o inglês vai ganhando cada vez mais espaço e, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1961, o ensino de línguas estrangeiras deixa de ser obrigatório, cabendo aos estados essa decisão. Nesse momento, o inglês se torna a principal opção e o latim é praticamente abolido (como um estudante e entusiasta do latim, isso me entristece). Na nossa história, é mais plausível que, em 1956, tanto os brasileiros quanto os russos fossem mais versados em francês do que em inglês.

Os assentos ejetáveis eram algo bastante recente na aviação nessa época. Antes, o piloto simplesmente abria o canopi (a cúpula da cabine), tirava o cinto e pulava pra fora, vestindo uma mochila de páraquedas. Outra opção era virar o avião de cabeça para baixo e deixar a gravidade puxar o piloto pelo teto. Conforme os aviões a jato ganham mais e mais velocidades, essas manobras se tornaram muito arriscadas pois o piloto podia acabar se chocando com a cauda o avião no momento do salto, e assim os assentos ejetáveis se tornaram essenciais. Os primeiros modelos do Meteoro de Gloster não tinham assentos ejetáveis mas, nas minhas pesquisas, descobri que os modelos importados pelo Brasil, os F-8 foram os primeiros a ter essa melhoria, então me senti à vontade para incluí-los na nossa história.

O texto, narração e direção deste episódio foram feitos por mim, o Pena.

Vozes:

Ada Rogato por Jujuba

Lacerda por Marcelo Guaxinim

Jayme por Lennon

Zé por Fencas

Ivo Lopes por Felipe Queiroz

Consultoria histórica por Willian Spengler, CA e Fencas.

Consultoria técnica por Lennon

Revisão por Sil Perez

Edição e mixagem por Felipe Reis.

Vinheta por Vitor Moreira

E a distribuição é do portal Deviante.

O Brasil Vai Pro Espaço #08 A Bruxa dos Ventos

1 de Dezembro de 2023, 19:28
Por: Pena


Este é um conteúdo em formato podcast, mas, se preferir, pode acompanhá-lo com o texto e imagens a seguir.

Para ver todas as imagens deste episódio, entre nesta galeria.

Capítulo 1 – O Acidente

Um grupo de bombeiros entra na pista com mangueiras jorrando água. O avião não tinha mais combustível, então não há o risco de explosão, mas o atrito da fuselagem deslizando sobre o asfalto fez o corpo da aeronave esquentar absurdamente.

Depois da fumaça se dissipar, eles podiam enxergar melhor. O Apoena estava de lado, sem uma das asas e sem um dos canards (aquela barbatana que fica na parte da frente). Quando o avião capotou de lado, essas estruturas se partiram, o que absorveu parte do impacto. Ainda assim, o Apoena deslizou mais de 200 metros antes de parar completamente.

Os bombeiros removem a cúpula da cabine, revelando um corpo sem movimento, solto, suspenso apenas pelo cinto de segurança. Neste momento, em que todos aguardavam o pior, a cabeça faz um leve movimento para o lado, e as mãos se movem lentamente, abrindo e fechando os dedos:

— Que trem doido foi esse?

Ivo estava vivo. Ele é levado diretamente para o hospital da base, onde se constata diversas fraturas nas costelas e na perna direita, além de alguns cortes no braço. Sua situação é estável, mas precisam levá-lo para a mesa de cirurgia. Durante a recuperação, Ivo precisará passar alguns meses de molho mas, ao menos, poderá se confortar com as mais de 500 cartas que receberia lhe desejando melhoras. Agora ele tinha uma noção de como o Programa Espacial estava tão presente na vida dos brasileiros.

Já o Apoena, apesar de estar manco de uma asa, não tinha sofrido grandes avarias. Os engenheiros teriam um trabalho razoável para restaurá-lo, mas, como tinham muitas peças extras vindas do “assalto” bem sucedido, poderiam deixá-lo zerado em 4 semanas.

Lacerda queria chamar um outro piloto para substituir Ivo, mas Ada tinha outra ideia:

— Delegado Lacerda?

— Que delegado Ada? É major-brigadeiro ou comandante, escolhe um deles.

— Ah, desculpa comandante, mas olha, não sei se vale a pena chamar um substituto.

— Claro que vale, você tá sozinha e a gente precisa de dois pilotos.

— Eu sei, mas, eu tô pensando aqui: se chamar o próximo da lista, ele vai chegar e ficar parado, porque o Apoena tá no conserto. Só quando o Apoena for liberado é que dá para começar o treinamento, que vai mais 2 ou 3 meses, e aí, quando a gente finalmente puder voar, é capaz do Ivo já tá de volta. Todo esse tempo jogado fora.

— To vendo onde você quer chegar. Mas com você de instrutora, a gente consegue acelerar bastante o treinamento do suplente. Afinal, você já voou nesse avião.

— Não, eu sou muito ruim de explicar as coisas, sabe. Eu sou mais intuitiva, não consigo nem lembrar direito o que eu fiz durante o voo, o Richard fica puto. Eu acho que meu tempo vai ser muito melhor usado voando o Apoena. Se eu ficar parada esse tempo todo, vou esquecer tudo que aprendi naquele primeiro voo.

— Ué, você acabou de dizer que já não lembra nada direito, e que voa só na intuição.

— Ah mas… vai que a intuição acaba esquecendo como voa, né?

— Tá bom, Ada, você ganhou. Se você acha que dá conta sozinha, eu pago pra ver.

— É isso Lacerdinha! Assim que se fala.

Ela pula no pescoço do major num abraço, quebrando qualquer resquício de protocolo que ainda restasse.

— Ei ei… segura as pontas aí. Não vai me decepcionar hein.

Capítulo 2 – Além da Estratosfera

No dia 8 de setembro de 1955, um Apoena reformado é lançado do bombardeiro B-17 a 9km de altura com uma Ada super compenetrada a bordo. O objetivo da missão era tentar cruzar os 40km de altura. O objetivo pessoal dela era domar o Apoena. Ada havia se sentado com o Jayme diversas vezes para discutir as manobras em baixa velocidade. Foram noites em claro em que ela se imaginou se aproximando do pouso, lutando com os controles, pressionando os freios aerodinâmicos na medida exata e tocando o solo perfeitamente alinhada. Tudo passava em sua cabeça como num filme e ela estava tensa pois sabia que agora era a vida real. Mas antes, ela tinha que cumprir a missão.

Acelerando ao máximo, Ada mantém o Apoena na altura de 20km até o mostrador marcar a impressionante velocidade de 2300 km/h, o que a transforma na primeira mulher a cruzar o Mach 2, ou duas vezes a velocidade do som.

Ela tinha um dilema agora. O objetivo era ultrapassar os 40km de altura, mas, nessa altitude, o ar é tão fino que não gera sustentação suficiente para segurar o avião no ar. Pra entender melhor isso, pensa que o avião é um golfinho numa piscina:

Quando o avião está no chão é como se o golfinho estivesse lá no fundo da piscina.

Quando o avião está em 20km é como se o golfinho estivesse no topo da piscina, na   superfície da água. A altura de 40km é como se fosse um aro que está suspenso alguns metros acima da água.

Não tem como o golfinho nadar tranquilamente até o aro, pois golfinhos não nadam no ar. O único jeito é o golfinho pegar impulso dentro da água e saltar com tudo pra fora. Se ele conseguir um impulso grande o suficiente, ele atravessa o aro e então cai de volta na água.

Ada teria que fazer esse salto para alcançar os 40km. Qual o melhor jeito de fazer isso? Um golfinho afunda um pouco antes do salto para ganhar impulso. Ela então pressionou o manche para frente, embicando o Apoena para baixo. A velocidade absurda aumentava ainda mais enquanto o avião perdia altura e, quando chegou em 17km, Ada puxou o manche para trás, o máximo que pôde, para erguer o bico do Apoena o quanto fosse possível.

— Alcântara, iniciando o salto . Uou!!

Ela se surpreendeu com a empinada.

Um avião normal tem as asas saindo do meio do corpo. No S-1, o Richard colocou as asas na parte de trás, o mais pra trás possível. Além disso, colocou os canards (as barbatanas) lá na parte da frente, na cabine do avião. O motivo era gerar o máximo de alavanca possível na hora de embicar. Era um golfinho feito para saltar.

O Apoena chegou a ficar 70 graus inclinado pra cima, Ada subia quase numa vertical.

A velocidade foi diminuindo enquanto ela subia e subia. Será que chegaria nos 40km?

Mas algo curioso aconteceu no meio do caminho. Como o Apoena foi ficando mais e mais leve à medida que o combustível queimava, em algum momento ele ficou tão leve que o impulso do motor apontando para baixo ganhou da gravidade e começou a acelerar o avião, aumentando a velocidade. Virou um foguete.

— Alcântara, a velocidade tá subindo, isso é incrível. Vou passar dos 40km. 

Ada, atenção, você não… o motor

Alcântara? Não copio. Repita. Alcântara? Ai cacete de águia zarolha!

Ela não tá ouvindo. Merda! Já passou dos 40 e tá entrando na ionosfera, o rádio não funciona. Ai caceta Zé, e agora?

— Mas, o avião parece ótimo, qual o problema?

— Ela tá subindo muito mais do que a gente previu. Só que é um salto. Quanto mais alto você sobe, maior é a queda.

— Isso quer dizer que o impacto da descida vai ser grande?

— Absurdamente grande. O Apoena não foi desenhado pra isso. Ninguém achou que ela conseguiria um salto tão alto. Ela tem que cortar o motor já. Ai meu Deus!

— Puta merda… São Longuinho, São Longuinho, se o Apoena voltar inteiro eu dou 3 mil pulinhos!

Mas Ada, por iniciativa própria, nunca cortaria aquele motor. Ela era um pássaro livre, que amava voar acima de tudo. Quando acabou o combustível, o altímetro marcava 55km e continuava a subir. O céu foi ficando escuro, o chão desaparecendo. Ela olhava para fora embasbacada com a visão. Dava para ver até a curvatura da Terra. Aquilo era inacreditável. O ponteiro foi subindo até alcançar os 69km, e então começou a descer.

Com o ar tão rarefeito, Ada mexia os controles, mas o avião não respondia. Ele começou a descer de costas, caindo como uma pedra. 

Aos poucos a velocidade foi aumentando e o Apoena começou a girar, até que o bico apontou para baixo. Nessa posição, ele cortava ainda melhor o vento e a velocidade disparou. Quanto mais ele despencava, mais a velocidade subia, e não havia nada que Ada pudesse fazer. Aliás, só uma coisa: acionar os freios aerodinâmicos.

— Segura Apoena, seguuuura!

Mas os freios pouco adiantavam, a velocidade continuava a subir e, agora, a temperatura também. Do chão, os espectadores viam um meteoro, incandescente, voando a 3x a velocidade do som.

— Meu Deus do céu!

Ada suava em bicas. O Apoena estalava, vibrava; as asas brilhavam em brasa.

Aos 30km de altura, os controles começaram a responder. Ada tinha pouquíssimos segundos para parar a queda ou se chocaria na parte densa da atmosfera. Mas se ela puxasse muito forte os controles, as asas se partiriam.

A pressão no manche é gigantesca. Ela faz força para puxar, mas tinha de fazê-lo suavemente, de maneira extremamente precisa. A força G vai subindo. Ela imediatamente comprime as pernas e o abdômen, num reflexo treinado tantas vezes na centrífuga. A visão se estreita, até se fechar num túnel escuro e comprido. Os sons desaparecem.

8G, 9G

Ela não podia largar, não podia apagar.

10G

— Vaaaaai!

9G, 8G, 7, 6, 5…

Finalmente, aos 12km de altura, ela consegue trazer o Apoena para a horizontal e, milagrosamente, ele está inteiro. E o melhor, a pista está logo abaixo deles.

— Calma Ada, não acabou ainda… falta o pouso.

Manobrando de maneira exemplar, Ada se alinha com a pista, descendo a 500km/h. Ela aplica os freios e se prepara para o arredondamento. Agora era o momento crítico. O Apoena relinchava, dava coices, reclamava – ela precisava domá-lo.

— Apoena, Apoena, se acalma meu menino. Apoena, Apoena, vem descendo, de mansinho. (Vem baixando, vem tranquilo)

 Zé, o que é isso? O que a Ada tá fazendo?

— Mano, ela tá… cantando pro Apoena?! Nunca vi nada parecido.

— Rapaz, eu vou gravar isso.

Apoena, Apoena, se acalma meu menino. Apoena, Apoena, vem voltando pro seu ninho.

Ninguém acreditou quando viu o toque suave das rodinhas na pista. Embora estivesse a 260km/h, a todos pareceu que o Apoena vinha deslizando sobre uma pista de gelo, até parar completamente. Ela havia conseguido. Fez o voo mais impossível que o mundo já vira, e saíra viva.

Capítulo 3 – O Superjato

Se Ada Rogato já era chamada de Rainha do Ar, depois desse voo a coisa perdeu o controle. “Bruxa dos Ventos” dizia um noticiário de rádio. “Senhora das Nuvens” era a manchete de um jornal. “Domadora de Aviões” afirmava um âncora na TV Tupi, tocando uma cantoria que, ninguém sabe como, vazou para um jornalista. O feito de Ada era algo que entrava para a aviação mundial. Ela era, simplesmente, a pessoa (homem ou mulher) que tinha ido mais rápido e mais alto no mundo. Lacerda, porém, tava furioso:

— Ada, Ada, o que você tem na cabeça, mulher?

— O de sempre, almirante, vontade de voar.

— Almirante não, minha querida… aí você me fode.

— Ops.

— Escuta, a missão era 40 quilômetros. Que lampejo de loucura te deu para achar que seria uma idéia razoável chegar em 70, hein?! Virou Astronauta agora?

— Tô trabalhando pra isso, chefinho. Mas olha, foi 69, não chegou nos 70.

— Pára de gracinha! Isso aqui é muito sério, moça. Você podia ter morrido, além de quase destruir a merda de um avião único que a gente… ralou muito para construir.

Nessa hora Lacerda quase deixou escapar a história do “grande assalto”, mas se segurou.

— Mas me falaram que o objetivo era passar dos 40km. Ninguém colocou um teto.

— E precisava?! Caramba Ada, é o mínimo do bom senso. Você atravessou toda a estratosfera. Não, isso não é nada aceitável!

— Tá, desculpa Lacerda… comandante Lacerda. Mas eu tô fazendo meu melhor pro programa. O Jayme disse que os dados do meu voo vão avançar em 2 anos o desenvolvimento das cápsulas espaciais. Achei que o senhor taria contente.

— Não, eu to puto. Esses cientistas amam a ciência, os dados e toda essa parada. Mas EU sou o responsável pelas pessoas, pelo programa! Já não basta o Ivo se estropiar todo, você tá querendo competir para ver quem morre mais rápido?! Acorda Ada, você não tá voando sozinha, tem uma equipe gigante por trás e você tem que no mínimo respeitar isso. Ei, quem é que tá pulando feito um coelho ali na pista?

O coitado do Zé não acreditava em superstições, mas promessa pra santo era coisa séria:

— 1245, 1246, 1247, 1248, 1249…

Mas voltando… o Lacerda estava coberto de razão em dar uma dura na Ada, mas, ainda assim, aquele voo tinha sido muito valioso para os cientistas. O Apoena foi todo desmontado para que se pudesse analisar completamente cada peça, válvula, vedação, sensor, atuador etc. e levaria um bom tempo até ele voltar a voar mas, para sorte da Ada, o segundo super avião do Richard, o S-2, tinha ficado pronto.

Esse usava motores a jato, não motor de foguete. Eram dois Avon 107, cada um queimando meio litro de querosene por segundo para gerar 3500 kg de força. A vantagem de se usar motores a jato era poder usar o oxigênio da atmosfera para fazer a combustão e assim ter 20 minutos de queima, em vez dos 5 minutos do Apoena. A desvantagem era que, justamente por usar oxigênio da atmosfera, o jato não poderia ir tão alto. Acima de 20km a potência diminui e passar de 25 se torna muito difícil.

O S-2 era um jato mais tradicional, com as asas voltadas para trás e uma cauda contendo duas asinhas, os estabilizadores horizontais, e uma vela, o estabilizador vertical. Sua fuselagem prateada rajada com azul metalizado e linhas douradas lembravam o estilo do Apoena, mas, diferente deste, o corpo era mais largo para abarcar os dois motores enormes, de forma que as rodinhas, mesmo escondidas dentro da fuselagem, estavam mais afastadas. Esse seria um jato bem mais estável pra pousar que o anterior. E por voar em alta velocidade por bastante tempo, chamaram o S-2 de “Goitacá” que significa “nômade” ou “errante” em Tupi.

Em 8 de novembro de 55, o Goitacá decolou da pista de Alcântara carregando uma Ada mais comportada. O objetivo da primeira missão, além de testar o próprio jato, era atingir uma velocidade supersônica por 5 minutos e retornar em segurança. Ada executou tudo de maneira precisa, sem emoções dessa vez, e, sobre o pouso, aquilo foi moleza. Com suas asas maiores e as rodinhas mais afastadas, o Goitacá era um cavalo manso perto do Apoena.

Capítulo 4 – 50 anos em 5

Durante esses 9 meses em que acompanhamos o progresso do Programa Gaviões, outras coisas estavam acontecendo em Alcântara.

Os cargueiros soviéticos começaram a chegar, trazendo cientistas e toneladas de equipamentos e peças de foguete, inclusive o motor RD-108 e os S-155 que eles estavam devendo ao Brasil por conta da negociação no começo do ano. Uma vez de posse desses motores, a principal equipe de engenheiros da base, liderada pelo Zé, tratou imediatamente de começar a engenharia reversa, mas aquilo era absurdamente complicado. Levaria anos até eles terem o primeiro protótipo para testar.

Enquanto isso, Richard e Jayme se dedicavam em desenhar o primeiro estágio desse novo foguete brasileiro, um foguete capaz de colocar um satélite em órbita da Terra. Tinha início assim, o novo programa da Base de Alcântara: o Programa Orbital.

Para tanto, foram contratados mais 50 cientistas, vindos principalmente das turmas de formandos do ITA. O IPD, o Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento, em São José dos Campos, somava agora 270 pesquisadores dedicados ao programa espacial.

Os lançamentos de foguete diminuíram nesse período, mas não pararam. A fim de gerar mais dados para a pesquisa biológica da Sílvia e da Vanda, subiram 3 Arapuás (a nossa abelhinha espacial), um levando um papagaio, outro um camundongo e o terceiro um coelho. Os foguetes foram chamados de Zé Carioca, Mickey e Pernalonga, quanta criatividade.

Na política brasileira as coisas se agitaram no segundo semestre por conta das eleições presidenciais. Quem venceu foi um médico mineiro que trazia um forte discurso desenvolvimentista, um tal de Juscelino Kubitschek. O slogan da sua campanha era avançar “50 anos em 5” com um plano de metas ousado pretendendo revolucionar a indústria de base, a energia, os transportes, a educação e, o carro chefe, o Programa Espacial Brasileiro. Ele prometia levar o Brasil mais longe, primeiro colocando um satélite em órbita, e, depois, o primeiro ser humano no espaço. Muitos analistas achavam aquilo um disparate completo, mas o povo comprou a ideia: a febre dos foguetes (como seria chamado aquele período nos livros de história) estava elegendo até presidente. Juscelino vence com ampla margem e é empossado em janeiro de 56.

Nos meses seguintes as obras começam a todo vapor, com estradas sendo abertas, novas indústrias sendo formadas e uma verba gorda impulsionando o Centro de Lançamento de Alcântara. Os 50 anos em 5 tinham começado.

Epílogo

Você ouviu o oitavo episódio de “O Brasil vai pro espaço”, produzido pelo Scicast.

Os eventos narrados aqui, embora fictícios, utilizam como base fatos e pessoas reais da história do Brasil e do mundo. Em especial, neste episódio:

Juscelino Kubitschek realmente criou o slogan “50 anos em 5” e um plano de metas super desenvolvimentista. Na história real, porém, a sua peça chave era a criação de Brasília, uma cidade moderna, planejada, que seria o símbolo para o seu governo.

Eu gastei horas discutindo com meus amigos historiadores se Juscelino, nesse novo cenário em que existe um programa espacial robusto aclamado pelo povo, ainda perseguiria a ideia de Brasília. Confesso que não chegamos num consenso.

Naquela época, a capital do país era o Rio de Janeiro, uma cidade de 3 milhões de habitantes. A ideia de transferir a capital para o interior, concebida ainda no século 19, não era apenas uma questão de desenvolvimento regional, mas tinha um propósito estratégico crucial: isolar o poder político das manifestações populares na metrópole carioca. Entretanto, será que construir uma cidade inteira, com um custo astronômico de 1,5 bilhão de dólares, representando 10% do PIB brasileiro, era a única opção? Imaginem se, ao invés disso, a capital fosse transferida para uma cidade já existente, como Goiânia, que, além de estar no coração do Brasil, tinha apenas 56 mil habitantes na época. Certamente, isso custaria somente uma fração do que foi investido em Brasília.

Para mim, Juscelino insistiu na ideia de Brasília como um símbolo de modernidade e progresso para sua campanha. Uma cidade planejada num formato de cruz (sim, gente, desculpa decepcionar todos vocês, mas Brasília não foi pensada num formato de avião), com jardins monumentais e prédios esculturais projetados pelo aclamado Oscar Niemeyer. Era o sonho megalomaníaco de JK ganhando vida.

Mas, e se esse sonho tivesse sido direcionado para o espaço? Imagine JK canalizando sua ambição para o Programa Espacial. Isso se alinharia perfeitamente com sua visão de progresso e modernidade. Seria a fronteira final da humanidade, um desafio inigualável, e que já contava com o apoio entusiasmado da população brasileira. E, o mais importante, colocaria JK não só nos livros de história do Brasil, mas do mundo inteiro.

Assim, meus amigos, acredito ter conseguido um argumento forte para repensar o legado de JK. Talvez, nessa nossa realidade alternativa, se Brasília desse lugar ao Programa Espacial, aquele 1,5 bilhão de dólares a mais poderia ser o impulso que faltava para o Brasil se lançar de verdade na corrida espacial.

O texto, narração e direção deste episódio foram feitos por mim, o Pena.

Vozes:

Ada Rogato por Jujuba

Lacerda por Marcelo Guaxinim

Jayme por Lennon

Zé por Fencas

Ivo Lopes por Felipe Queiroz

Vozes extras por Diogo Paschoal

Consultoria histórica por Willian Spengler, CA e Fencas.

Consultoria técnica por Lennon

Revisão por Sil Perez

Edição e mixagem por Felipe Reis.

Vinheta por Vitor Moreira

E a distribuição é do portal Deviante.

Música: Impact Lento – Kevin MacLeod (incompetech.com)
Licenciado sob Creative Commons: By Attribution 3.0
http://creativecommons.org/licenses/by/3.0/

O Brasil Vai Pro Espaço #07 Ada Rogato

24 de Novembro de 2023, 22:56
Por: Pena

Este é um conteúdo em formato podcast, mas, se preferir, pode acompanhá-lo com o texto e imagens a seguir.

Para ver todas as imagens deste episódio, entre nesta galeria.

Capítulo 1 – A Seletiva

Domingo, dia 27 de março de 55, foi um dia especial no Centro de Lançamento de Alcântara. 29 Homens vindos do Brasil todo se apresentavam na base, carregando uma mala suficiente para passar um mês. Havia também uma única mulher, Ada Rogato, para completar os 30 pré-selecionados para o Programa de Aviões Experimentais para Grande Altitude e Velocidade, também conhecido como Programa dos Grandiosos Aviões, que foi encurtado para Programa Gaviões.

Como esperado, a grande maioria eram jovens pilotos da aeronáutica: 5 Primeiros-Tenentes, 10 capitães, 6 Majores e 2 Tenentes-Coronéis, todos em plena atividade, acumulando de 8 a 28 anos de carreira. No total, eram 23 aviadores militares.

Os 7 restantes eram civis, sendo 4 deles pilotos de teste de companhias aéreas brasileiras: a PanAir, a Varig, a Vasp e a Cruzeiro do Sul. Os outros 3 vinham de aeroclubes e participavam de grupos de demonstrações acrobáticas. Esse era o caso da Ada.

Ela fora a primeira mulher brevetada pelo Aeroclube de São Paulo, em 1936 (brevê é o nome da carteira de motorista de aviões). Durante os anos 40, Ada participava de shows aéreos pela América do Sul, além de fazer demonstrações de paraquedismo.

Com seus 45 anos, Ada era a minoria, da minoria, da minoria. Civil, única mulher e a mais velha do grupo. Ela atraía olhares e risadinhas pelos corredores, para alguns aquilo era uma brincadeira de mau-gosto da FAB:

— Quem vai levar a vovó pra dar um passeio de avião?

Havia outros, porém, que tinham ouvido falar nos feitos da Ada e se aproximavam para ouvir suas histórias.

— Sim, era um Paulistinha CAP-4 de 65 cavalos. Me falaram que era impossível cruzar os Andes com aquele avião… pfff, falei pra eles: ah é, segura minha caipirinha aqui. Fui e voltei tranquilo. Bom, ok, tranquilo não foi, mas isso fica pra outra história.

Na segunda-feira cedinho, os 30 pré-selecionados se apresentaram para os testes físicos: foi uma semana pesada que começou com uma bateria de exames (sangue, pressão arterial, visão, audição) e seguiu para avaliação cardiovascular: uma corridinha básica de 10km seguida de natação por 1km.

Ada sofreu bastante e conseguiu finalizar apenas 4 minutos antes do limite. 3 candidatos não tiveram a mesma sorte e já foram cortados: 2 deles não sabiam nadar e 1 não terminou a tempo.

Na quarta-feira foram os testes de força e flexibilidade. Ada penou muito nas flexões de braço e por pouco não foi cortada:

— Mais uma, só mais uma, vamo Ada, vamooo… Aee boa!

— Ah ah, foi… foi… 

2 outros candidatos falharam na parte do alongamento e foram excluídos.

Na quinta-feira foram os testes de equilíbrio e coordenação. Nenhum deles teve dificuldade em andar sobre a trave ou arremessar bolinhas nos alvos. Pilotos, em geral, têm uma coordenação excepcional comparado à média.

À tarde eles fizeram o teste de apneia. Ada aguentou 3 minutos e 22 segundos sem respirar, bem acima dos 2 minutos de corte, mas outros 2 candidatos falharam.

Na sexta-feira seria o famigerado teste de força-G. Aqui vale explicar o que é isso.

Quando estamos sentados numa cadeira, nosso corpo está recebendo a força da gravidade do planeta puxando a gente para baixo e é por isso que a gente não sai voando. Quando um piloto está sentado no cockpit de um avião, ele também sente a mesma força. Mas, no momento que o avião faz uma guinada para cima, o piloto sente uma força extra para baixo que se soma à gravidade. É a mesma coisa que acontece quando o carro faz uma curva fechada e a gente sente uma força para o lado, mas, nesse caso, a força é para baixo. Quanto mais forte o piloto puxa o manche, maior é a força que ele sente puxando para baixo e a gente mede isso em número de gravidades. 2G significa que o piloto sente uma gravidade duas vezes maior que o normal. 3G é três vezes, 4G é sinal de celular, não, é 4 vezes e assim por diante. Agora imagina vocês sentindo uma gravidade 4 vezes maior? A gente se afunda na cadeira como se pesasse 4 vezes mais. O peso no peito é tão grande que fica difícil de respirar. O sangue também é puxado com força para baixo e se concentra nas pernas. O coração não consegue bombear sangue suficiente para o cérebro e a pessoa apaga, o que seria desastroso quando você é o piloto do avião. Existe uma roupa que os pilotos podem vestir que comprime as pernas para manter mais sangue disponível na cabeça, mas, mesmo assim, um piloto de teste precisa contrair com força os músculos do corpo para aguentar acelerações absurdas de 7, 8, 9Gs.

Agora que a gente sabe tudo isso, vamos voltar para o teste.

Construíram uma centrífuga gigante em Alcântara para o treinamento do programa tripulado, e ela seria usada para testar nossos candidatos.

Centrífuga para treinamento de pilotos

São 4 passadas. Em cada uma o participante é submetido a uma força G por 30 segundos e precisa, a cada 10 segundos, apertar 3 botões no painel, numa sequência correta, para garantir que eles estão conscientes e capazes de pilotar um avião.

Para ser aprovado, o participante precisa passar nas duas primeiras passadas, com 6 e 7Gs. As últimas duas passadas, com 8 e 9Gs rendem pontos extras para o piloto que conseguir.

Todos os candidatos passaram na primeira passada, mas 5 apagaram durante a segunda passada e foram eliminados. Ada estava tranquila e passou sem dificuldade pelos 7Gs, mas agora começava o verdadeiro desafio.

Metade não aguentou os 8Gs. Alguns apagaram, outros apenas não conseguiram apertar os botões na ordem correta, pois estavam lutando com todas as forças para suportar o esforço. Ada foi uma das que passou.

Agora era a passada final, com 9x a gravidade. Ada sentia a cabeça mergulhando num oceano, a visão se estreitando e ficando distante, como se estivesse num túnel. Os sons foram diminuindo, se apertando, o mundo ficou em câmera lenta. Ela mal sentia a ponta dos dedos apertando os botões. Respirar parecia impossível, mas ela tinha que fazê-lo ou apagaria em segundos.

Uma força extrema guiava sua mão enquanto ela mantinha todos os músculos das pernas e da barriga contraídos, lutando contra a gravidade implacável. Cada gota de vontade dela foi espremida naquela centrífuga, porque ela queria aquilo mais que tudo, provar para aquele bando de garotinhos o que uma mulher era capaz de fazer.

— Aaaaaaaaaaaaaaa!

E ela passou. Além de Ada, apenas um outro piloto aguentou a última passada, o major do 1°Grupo de Aviação de Caça, o mineiro Ivo Lopes, de 39 anos. Parece que os jovens cheios de testosterona   não estavam acompanhando os vovôs.

Terminada a primeira fase, 12 homens se despediram de Alcântara – sobraram 17 homens e uma mulher.

Na pontuação total, Ivo despontava em primeiro lugar e Ada vinha abaixo da média. Embora tivesse ganho muitos pontos nos testes de força G e apneia, ela tinha ido mal nos de força e resistência.

No final do dia, o comandante Lacerda os chamou:

— Parabéns candidatos, foi uma semana muito intensa e vocês todos foram muito bem. Esse é um teste para selecionar os melhores dos melhores e uma fase já se foi, faltam duas. Semana que vem será a avaliação de conhecimentos aeronáuticos. Quem tirar menos de 7 será reprovado. Descansem e estudem.

Foram 3 provas, uma sobre fundamentos da aviação, com perguntas sobre sustentação de asa, arrasto, ângulo de ataque, ângulo de estol etc. A segunda sobre procedimentos de voo, pouso, decolagem, flaps etc. E a terceira sobre procedimentos de emergência, ejeção, paraquedas e até de sobrevivência em florestas. O fato de colocarem uma prova em separado para emergência, dava uma mensagem clara a todos de que ali eles eram pilotos de teste e acidentes eram uma possibilidade real.

Todos passaram nas provas e, tirando uns 2 ou 3, as notas foram muito altas, de forma que o ranking continuava praticamente o mesmo dos testes físicos. Ada estava em 12° lugar e passou a ficar muito preocupada depois do anúncio do Lacerda:

— Vocês me encheram de orgulho, até agora. Na próxima semana será o teste de habilidade, onde a gente vai descobrir se vocês são tão bons pilotos como dizem que são. Tô cansado de ouvir histórias nos corredores. Agora é pra valer. Ah, só mais uma coisa. Decidimos que o programa só precisa de 2 pilotos de teste por enquanto, então se esforcem para ficar em primeiro ou segundo lugar. Boa sorte, Vai Filhão!

A semana começou tranquila. Na segunda, cada um deles se revezou a bordo de um T-6, um avião monomotor de treinamento capaz de fazer manobras. O objetivo era se familiarizar com o avião e mostrar perícias básicas de voo. Após a decolagem, bastava seguir um percurso estipulado, que envolvia algumas curvas, e depois pousar. Pontos eram perdidos por imprecisões, mas ninguém cometeu nenhuma gafe.

Na terça foi o teste de acrobacia. Cada piloto tinha que fazer uma série de manobras e ganhava pontos extras se conseguisse emendar uma na outra. Ada deslizava no ar, como um pássaro de tão leve. Um oito cubano se transformava num trevo de 4 folhas, seguido de um split-S, ganhando velocidade e entrando num longo snap roll invertido que faz o avião entrar em estol, que Ada perfeitamente transforma num parafuso descendente, acelerando perto do chão. O avião passa próximo da pista de lado, com uma das asas quase tocando o solo, para então subir num immelmann perfeito.

Lacerda tava puto, não era para os pilotos baixarem de 50m.

— Quem ela pensa que é?

— É simplesmente um pássaro… senhor.

— Pode tirar 10 pontos pela infração.

— Mas… senhor, posso colocar +20 como bônus pela ligação das manobras?

— Tá vai, pode… mas tira os 10!

— Claro, claro.

Ada prossegue seu espetáculo aéreo de maneira impecável. Sua base de piloto acrobático fazia toda a diferença. Os militares treinavam manobras de combate, que eram eficientes, precisas. Mas Ada passou 10 anos fazendo shows acrobáticos em toda a América do Sul, ganhando muito prestígio por onde passava.

Ada Rogato em 1936.

— Desculpa, xerife Lacerda.

— Comandante Lacerda!

— Ops, eu sempre me confundo com essas patentes… mas, eu tava lá voando e por um segundo eu esqueci que tava num teste, olha só que coisa. O Téssio respondia tão bem que deixei ele livre, pra fazer o que tava sentindo. Ele queria muito fazer aquela faca sobre a pista.

— Quem é Téssio, do que você tá falando?

— Ah, é o nome do avião: T-6… Téssio, sacou? Eles voam com muito mais vontade quando a gente dá um nome, sabe?

— Era só o que me faltava. Fala lá pro Téssio então que, na próxima vez que ele sentir vontade de sair do regulamento, a senhorita estará desclassificada, tá ouvindo?

Mesmo com a penalidade, Ada subiu 4 posições e estava em oitavo agora.

O próximo teste era de voo visual, sem instrumentos. Os aviões experimentais já têm poucos mostradores e eles podem parar de funcionar por conta das situações extremas. Um piloto de teste tem que saber pilotar só no olho. Colocaram várias fitas cobrindo os mostradores do Téssio, e lá foi a Ada dar mais um passeio nos céus. Ela já tinha atravessado as Américas com um avião que nem rádio tinha, tendo que contar apenas com seus mapas, uma bússola, e seus olhos para fazer essa e outras travessias. Os outros pilotos todos estavam acostumados com dezenas de ponteiros e tiveram dificuldade em navegar só no olho. Ada, ao contrário, inclinava o Téssio para a direita ou à esquerda, para aumentar a visibilidade, e seguia marco após marco sem hesitar. Para quem foi até o Alasca e voltou naquelas condições, aquilo era um passeio no parque. Ela fez o menor tempo disparado e agora já estava na quinta posição geral.

Ada Rogato ao lado do seu Cessna que atravessou as américas, todo grafitado com os registros de cada lugar que ela foi.

Na quinta-feira fizeram saltos de paraquedas e muitos pilotos pousaram fora da marca. Ada já tinha sido campeã paulista e brasileira de paraquedas, aquilo era brincadeira de criança. Naquele dia, à noite, fizeram um voo noturno para representar situações adversas. Ivo foi o melhor, mas Ada não ficou longe. Ao final do dia, Ivo ainda estava em primeiro com Ada em terceiro na classificação geral.

O último dia seria o teste surpresa, ninguém sabia o que esperar:

— Preciso contar pra vocês um segredo do nosso programa. O avião experimental terá um motor de foguete, que só dura 5 minutos. Depois disso, acaba o combustível e o piloto tem que pousar na banguela, igual um planador. Então, o último teste será desligar o motor do T-6 a 1000m de altura e ficar o máximo de tempo no ar e pousar em segurança.

Nessa hora Ada abriu um sorriso. Antes mesmo de ser piloto de avião, ela foi a primeira brasileira brevetada no voo a vela, que é o nome técnico para voo de planador. Ela, inclusive, já tinha sido piloto de teste de planador por alguns anos e, se tinha uma coisa que ela sabia fazer bem, era surfar o vento.

Todos ficaram boquiabertos ao ver o que ela era capaz de fazer com o T-6, quer dizer, com o Téssio. O avião descia numa espiral suave, parecia em câmera lenta. Ela ia caçando o vento, buscando as rajadas mais fortes, dançando sobre as nuvens, nesse balé das alturas.

Até o Lacerda não conseguiu se segurar:

— Como é possível isso, da onde veio essa mulher?

— É… pelos registros, ela veio de São Paulo, senhor!

Ao se aproximar do pouso, o vento vinha de atravessado na pista. Ada não pensou duas vezes, desceu alinhada com o vento, deixando todos chocados de pavor. Ela deveria descer alinhada com a pista, mas o Téssio vinha de lado, não fazia sentido. Ela sentiu que o vento era forte e, por isso, conseguiu reduzir a velocidade do avião de tal maneira que, pouco antes de tocar o solo, ela pisou no pedal do leme e endireitou o Téssio com a pista, arrancando aplausos até mesmo dos adversários.

No fim, Ada passou Ivo e ficou em primeiro. No dia 26 de abril de 55, os seus nomes foram publicados no Diário Oficial, agora eram oficialmente os pilotos de teste do programa Gaviões.

Capítulo 2 – O Super Avião

Nos 2 meses seguintes, passariam por um rigoroso treinamento para se familiarizar com a cabine do novo avião que tinha ficado pronto. O S-1 era um avião muito inusitado. À primeira vista, se notam as duas asas que apontam para frente. Sim, isso mesmo: imagine as asas como os braços de uma pessoa. Em vez dos braços estarem esticados para o lado ou numa diagonal para trás, eles estão numa diagonal para frente. Por que isso?

Richard estudou tudo que havia de mais atual em aerodinâmica e resolveu tentar uma ideia que já estava sendo explorada antes mesmo da Segunda Guerra. As asas para frente criam um fluxo de ar que vai das pontas das asas para o centro do avião, o que cria menos vórtices e diminui o arrasto.

Mas afinal, o que é o arrasto?

Arrasto é a força que o vento causa empurrando as coisas para trás. Imagine-se correndo contra um vento forte. Você vai ter que se esforçar muito mais para conseguir manter a mesma velocidade. Essa força que te empurra pra trás é o arrasto.

Quanto mais rápido um avião voa, mais rápido é o vento que ele sente, e maior é o arrasto. Isso quer dizer que, quanto mais rápido o avião vai, mais difícil fica para ele acelerar mais. Por isso, todo avião tem uma velocidade limite, que é quando o arrasto fica tão grande que o motor não consegue acelerar mais o avião, só consegue manter a velocidade.

Mas quando a gente quer fazer aviões supersônicos, que vão tentar voar a velocidades insanas, o arrasto é o seu maior inimigo. Você quer fazer o avião com o menor arrasto possível. As asas para frente ajudam nisso.

Outro jeito de diminuir o arrasto é ter asas pequenas. Quanto maior o tamanho das asas, mais arrasto elas causam. O S-1 tinha asas pequenas, além de pra frente.

Mas qual é o problema de usar uma asa pequena?

As asas servem para dar sustentação ao avião. Quanto maior a asa, mais força pra cima o avião recebe. Um avião sem asa simplesmente não levanta voo. Porém, não é só o tamanho da asa que influencia na sustentação. Quanto mais rápido o avião voa, maior é a força pra cima que a asa produz. Por isso que, ao decolar, o avião precisa primeiro acelerar bastante na pista, e só depois ele pode subir. Um avião parado, não importa o tamanho da asa, nunca levanta voo.

Ótimo, isso quer dizer que, quanto mais rápido o avião vai, menor é a asa que ele precisa para voar, certo? É o melhor dos mundos. Você faz um avião com asa pequena que causa menos arrasto, e que por isso permite ele ir mais rápido, o que faz a sustentação aumentar a ponto de mantê-lo no ar. Perfeito.

Só tem um problema… em algum momento esse avião vai ter que pousar. E nessa hora ele tem que diminuir de velocidade. Mas se as asas são pequenas, em baixa velocidade elas param de produzir tanta sustentação e o avião despenca.

Existe um jeito de contornar esse problema, os chamados flaps. Flaps são painéis nas asas que se inclinam e conseguem empurrar mais ar para baixo, aumentando a sustentação, ao mesmo tempo que aumentam também o arrasto. Ao pousar, os aviões abaixam os flaps e podem tocar o chão mais devagar e sem despencar no processo.

Só que o S-1 não tinha flaps. Colocar flaps adiciona mais complexidade e, pior, adiciona mais volume nas asas, o que, adivinhem, adiciona arrasto. Richard queria fazer um avião muito simples e com o menor arrasto possível. O S-1 foi desenhado para voar em altíssima velocidade. E pra pousar? Bom, é por isso que ele precisa dos melhores pilotos.

Voltemos ao S-1. Além das suas asas serem pequenas e voltadas para frente, elas eram posicionadas na parte de trás do avião. Não era como um avião convencional que, na parte de trás, tem aquelas asinhas menores (chamados de estabilizadores horizontais). Na verdade, essas asinhas estavam colocadas na parte da frente do avião. Imagine duas barbatanas saindo do focinho do S-1, cada uma para um lado. Essa configuração a gente chama de “canard”, que é pato em francês, e o motivo é porque quem inventou isso foi, adivinhem só,  o Santos Dumont no seu primeiro avião, o 14-Bis. Os franceses, ao olhar aquela estrutura na frente do avião, acharam que parecia o pescoço de um pato esticado e deram o nome de “canard”.

Enfim, fato é que, usar o “canard” traz mais sustentação para o avião do que usar o estabilizador horizontal, que tira sustentação. Como o Richard queria espremer o máximo de performance possível, ele optou por essa configuração.

Mas o maior motivo para ele usar o “canard” era outro. O S-1 era um avião para voar alto, acima da estratosfera, onde o ar é muito rarefeito. Com pouco ar, os controles do avião não funcionam direito. É preciso ar para que os controles apliquem alguma força e façam o avião se inclinar. Já que tem pouco ar, então a ideia é usar uma alavanca maior. Ao jogar as asas lá para trás e o canard lá para frente, Richard criou a maior alavanca possível. Esse avião seria capaz de se inclinar para cima mesmo com pouco ar.

Pronto, agora você entendeu tudo do S-1, para finalizar, basta dizer que ele foi pintado pelo nosso querido carnavalesco da Unidos dos Telégrafos e ficou lindão:

Da cabine prateada surgem linhas douradas que se abrem em leque no comprimento da fuselagem. Os vãos das linhas são preenchidos com o icônico azul metalizado, que também recobre as asas, os canards e o estabilizador vertical. Neste último, estão estampadas as asas da Força Aérea. Na parte de cima do corpo aparece o logo da AEB acompanhado da bandeira do Brasil. Na lateral, em branco, está escrito APOENA. Sim, esse é o nome da nave, que significa “Aquele que vê mais longe” em Tupi. Já que é um avião para voar mais alto do que todos os outros, o nome faz sentido.

Capítulo 3 – Supersônico

Na manhã do dia 14 de julho de 55 estavam todos tensos. Lacerda fumava igual uma chaminé. Jayme checava com Ada cada procedimento e repassava a missão em detalhe. Ivo Lopes estava junto, ele era o suplente de Ada, mas parecia mais nervoso do que ela:

— Ada, lembra que o trem de pouso tá emperrando e tem que baixar manualmente.

— Pode deixar, Ivo, já coloquei uma fita vermelha no botão.

— Vai lá, Ada, faz o seu show… Boa sorte, Gaivota Solitária.

— Tô sozinha não, o Apoena tá comigo. Brigada Ivo.

Como Apoena usava um motor de foguete super faminto, que consumia todos os 2000kg de álcool e os 1700kg de oxigênio líquido em apenas 5 minutos na potência máxima, a ideia seria partir com ele já do alto, assim ele não gastaria tempo precioso decolando. Além do mais, por ser um avião nunca testado, se desse algum problema sério na decolagem seria  uma catástrofe certa. Mas, se ele já começasse em 9km de altura, haveria tempo para recuperar os controles antes de atingir o solo, ou no mínimo ejetar do avião.

Por isso, eles estavam prendendo o Apoena na parte debaixo do bombardeiro B-17 de quatro motores, que a FAB tinha disponibilizado para isso.

Zé e Richard checavam cada instrumento, cada componente, cada parafuso. Ada embarcou no Apoena, que por sua vez estava embarcado no B-17, que enfim decolou para a primeira missão do programa, testar o regime supersônico.

Quando estava a 9100m de altura, o B-17 liberou o Apoena, que despencou instantaneamente. Naquela velocidade de 420 km/h, as pequenas asas eram incapazes de segurar o avião de 5,3t no ar.

Ada dá a ignição no motor XLR-11, que acende furiosamente as 4 câmaras de combustão, projetando um total de 26,7kN de força, quase o dobro do motor a jato do Meteoro de Gloster. O tranco faz Ada afundar no assento.

— Uou, segura aí Apoena… não precisa ter pressa, a diversão só tá começando.

Na torre de comando estava nosso locutor oficial, Sergio Cassani, narrando o voo para todo o Brasil:

— Atenção, o Apoena se desprendeu do avião cargueiro e… partiu! Vaaaaaai Filhão… O motor acendeu com sucesso e o Apoena raaaaaaasga os céus numa velocidade impressionante. Lembrando que essa é uma missão para cruzar a barreira do som, um feito inédito aqui no Brasil.

A velocidade vai aumentando de maneira impressionante. Ada rapidamente embica o Apoena para cima para alcançar uma altura em que o ar é mais rarefeito e, portanto, o arrasto é menor.

Passando dos 20km de altura, onde nenhum outro avião brasileiro poderia chegar, Ada se alinha com o horizonte e aplica máxima potência.

— Agora você tá livre Apoena, vai com tudo!

— Olha só galera, a velocidade tá subindo. Será que vai passar a barreira do som? Nessa altura que a Ada tá, a velocidade do som é 1060km/h. A telemetria tá marcando 1020. Falta pouco… é muita emoção. Atenção, 1050, 1055, 1056, 1057… Eita, tá parando. Será que não vai?

Quando um avião se aproxima da velocidade do som, as ondas sonoras se acumulam em alguns pontos da fuselagem, atrapalhando o fluxo de ar, o que gera um arrasto extra. Por isso o Richard fez as asas para frente, para diminuir esse tipo de arrasto.

— 1059… 1060! CRUZAMOS A BARREIRA DO SOM! O Brasil é oficialmente supersônico. Que momento incrível. Nossa! Olha só a onda de choque que chegou aqui galera. Uau.

A partir do momento que o avião cruza a barreira do som, ele começa a emanar um cone de pressão conhecido como onda de choque, que é sentido como um estrondo enorme. 

— Ada, Ada, você está bem? Você copia?

— Melhor impossível… isso aqui é muito divertido.

— Mas e o estrôndo sônico, você sentiu?

— Nadinha, exatamente com o Richard previu… Incrível né?

Depois de cruzar a barreira, o arrasto transônico vai diminuindo e o Apoena volta a acelerar.

Ao chegar em 1600km/h, Ada reduz os motores e tenta manter o máximo de tempo possível nessa faixa. O objetivo da missão é avaliar os efeitos do regime supersônico nos sensores colocados dentro e fora da cabine.

Após 8 minutos, o combustível acaba e o Apoena se transforma num planador.

— Você foi incrível, Apoena. Agora me dá licença que é minha vez de brilhar!

Ada finalmente pôde sentir os controles, fazer curvas, manobrar, enquanto buscava a pista 20km abaixo. Tentando se orientar pelo relevo, ela finalmente avistou a pista. O avião estava meio arisco. Qualquer toque no manche fazia ele se inclinar com força. O mais preocupante, porém, era a velocidade. Descendo para a pista, o Apoena acelerava absurdamente, afinal, ele foi feito para cortar o vento. Ada aplicava os freios aerodinâmicos a todo momento, como um cavaleiro segurando as rédeas de um cavalo bravo.

— Calma rapaz, caaaalma rapaz…

Ada faz um teste para descobrir qual a velocidade de estol, ou seja, qual a velocidade mínima antes do avião despencar. E descobriu que era 260km/h:

— Maldito urubu do capeta, isso é muito insano… calma, Ada, você consegue.

Só para vocês terem uma comparação, a velocidade de estol do Cessna 140A que a Ada usara para cruzar as américas era 72km/h.

Ela fez a descida para o pouso mantendo 500km/h e, faltando 150m para a pista ela iniciou o arredondamento, que é a puxada para trás do manche para nivelar com o solo. Se ela perdesse o ângulo certo, ou se espatifaria no chão ou passaria voando por cima da pista (e cairia no mar).

A manobra é bem executada e o Apoena está agora voando a uns 5 metros de altura a 320km/h. Ela puxa os freios aerodinâmicos para sangrar sua velocidade antes de tocar o solo. Mas o Apoena sacode, balança. Os controles são muito sensíveis, a asa inclina prum lado e pro outro, como um animal irritado.

— Segura, segura Apoena, me ajuda.

Quando as rodas tocam o solo, Ada imediatamente sente algo muito esquisito, como se a qualquer momento o avião fosse sair do eixo e capotar.

Normalmente, os aviões têm o trem de pouso escondido dentro das asas, que faz com que uma roda fique afastada da outra. Com uma base grande, o avião não capota de lado. Mas o S-1 não podia esconder o trem de pouso na asa porque ela era muito fina, então o Richard o colocou dentro do corpo do avião, o que deixou as rodas muito próximas. É como uma mesa com as pernas juntas, qualquer desequilíbrio e ela tomba.

Aplicando os freios ao máximo e segurando na ponta dos dedos, Ada nem acredita que consegue estabilizar o pouso. O Apoena finalmente para e ela pode então respirar:

— Ahhh, ahhh, caceta de cegonha endiabrada… consegui.

Capítulo 4 – Mais Alto

No dia seguinte a foto de Ada estampava os jornais. O Brasil tinha muito que se orgulhar. Fazia parte do pequeno grupo de países que tinham rompido a barreira do som com um tripulante, e Ada se tornou a terceira mulher a conseguir esse feito, atrás apenas da americana Jacqueline Cochran e da francesa Jacqueline Auriol. Mas o que Ada ainda não tinha se dado conta é que ela havia ultrapassado o recorde das duas, tanto em velocidade quanto em altitude. Com seus 1600km/h e seus 22km de altura, Ada Rogato era a mulher mais veloz e que chegou mais alto do mundo. Os jornais começam a chamá-la de “Rainha do Ar” e, quase 50 anos depois do voo histórico de Santos Dumont, o Brasil entrava novamente para a história mundial da aviação com Ada Rogato.

— Richard, Richard… você é um gênio! Esse teu avião é incrível. Tá, eu sei que todo mundo riu quando viu aquelas asas viradas pra frente, mas como esse bicho corta o ar. A Ada disse que dava pra ir ainda mais rápido.

— Obrigado comandante, mas olha, não se engane. Eu fiz um avião para ser incrível em alta velocidade, mas ele é péssimo em baixa velocidade e pior ainda para pousar. Os pilotos é que têm que segurar a bronca.

Quase um mês depois, é a vez do major Ivo Lopes fazer seu voo de estreia. A missão seria alcançar 25.000m de altura em voo supersônico. Ada queria muito aconselhar o parceiro, mas tinha medo da reação dele. Ainda assim, tomou coragem.

— Ada? Errou de quarto? Vai dormir mulher!

— Oi Ivo, eu só vim te desejar boa sorte pra amanhã.

— Ah, obrigado, querida. Poxa, receber essa visita da “Rainha do Ar” é uma super honra hein?

— Ai, tá bom, por que que tive essa ideia idiota? Tchau.

— Ei ei, calma… pode falar, tava só brincando com você.

— Escuta Ivo, é bem sério o que vou falar, o Apoena é um cavalo selvagem, ele é muito instável…

— Que que cê tá falando Ada? Olha, eu sei que você é uma piloto incrível, mas você só pilotou aviões lentos. Eu tenho 10 anos pilotando o Thunderbolt e passei os últimos 2 anos com o Meteoro, tô acostumado com velocidade alta.

— Presta atenção, Ivo, não tem a ver com velocidade, pelo contrário, é sobre a falta de velocidade. O Apoena não voa direito devagar.

— Então pode deixar que eu vou manter ele sempre rápido, hehe.

— É, realmente foi uma ideia idiota. Deixa pra lá.

— Olha, o Zé já mexeu nos controles. Você disse que tava muito sensível, ele reduziu o curso dos ailerons.

— Ivo, você não faz ideia do que eu tô falando, mas não tenho como te fazer ouvir. Depois de amanhã a gente conversa. Só se esforça pra voltar inteiro. Boa sorte.

O sol mal havia raiado quando o B-17 decolou da base de Alcântara carregando o Apoena no ventre. Às 7:18, o major Ivo Lopes deu partida no motor do Apoena na máxima potência e rumou para o alto.

Voando de maneira suave e precisa, Ivo alcança quase 2000km/h em minutos, quando então embica o Apoena para cima, queimando o restante do combustível. A aeronave faz um arco bonito, chegando até os 25.000m de altura.

— Alcântara, missão cumprida. O altímetro marca 25k. Preparando para o pouso.

5 minutos depois, apontava o Apoena no horizonte, alinhado com a pista. Ele vinha descendo rápido, mas havia algo estranho. As asas balançavam, o avião dava uns soluços, ele vinha meio derrapando no ar. O silêncio era absoluto, ninguém respirava. Nos últimos metros, parecia que Ivo recuperou o controle e as rodinhas se alinharam na pista, mas… no momento do toque, a 250km/h, o avião balança uma última vez e então… capota.

— Ai meu Deus!!

Epílogo

Você ouviu o sétimo episódio de “O Brasil vai pro espaço”, produzido pelo Scicast.

Os eventos narrados aqui, embora fictícios, utilizam como base fatos e pessoas reais da história do Brasil e do mundo. Em especial, neste episódio:

As manobras descritas nesse episódios são reais e o voo acrobático da Ada foi pensado de um jeito que faz sentido. Se eu tentasse descrever cada manobra ficaria extremamente chato então optei por uma narrativa mais emocionante, mas o ouvinte mais curioso pode buscar as manobras na internet e montar uma imagem mais visual do voo.

Ada recebeu diversos apelidos durante sua carreira, entre eles: Águia Paulista, Rainha dos Céus do Brasil,  Gaivota Solitária, Pássaro solitário, Condor dos Andes.

O texto, narração e direção deste episódio foram feitos por mim, o Pena.

Vozes:

Cassani por Sacani

Ada Rogato por Jujuba

Lacerda por Marcelo Guaxinim

Ivo Lopes por Felipe Queiroz

Richard por Pena

Sargento Rocha por Vitor Moreira

Vozes extras por Vitor Moreira, Daniel Koss, Diogo Paschoal e Pena

Consultoria histórica por Willian Spengler, CA e Fencas.

Consultoria técnica por Lennon

Revisão por Sil Perez

Edição e mixagem por Felipe Reis.

Efeitos sonoros por Pena e Vitor Moreira.

Vinheta por Vitor Moreira

E a distribuição é do portal Deviante.

O Brasil Vai Pro Espaço #06 Entre a Foice e o Martelo

17 de Novembro de 2023, 19:32
Por: Pena

Este é um conteúdo em formato podcast, mas, se preferir, pode acompanhá-lo com o texto e imagens a seguir.

Para ver todas as imagens deste episódio, entre nesta galeria.

Capítulo 1 – Guerra Fria

Antes de contar o que aconteceu nessa reunião, a gente precisa entender o contexto histórico.

Com o fim da Segunda Guerra, EUA e URSS começaram uma disputa ideológica, cada potência buscando expandir sua influência e seu modelo político-econômico pro mundo. Na Europa o cenário já estava meio que definido mas, em outros continentes, o jogo ainda estava aberto.

Na América Latina, pela proximidade geográfica, os EUA saíram na frente, propagandeando massivamente sua música, filmes e seu american-way-of-life. Através da Doutrina Monroe e da Política de Boa Vizinhança, os americanos procuravam fortalecer laços, oferecendo ajuda econômica e suporte militar aos governos locais.

Enquanto isso, a União Soviética focava seus esforços principalmente no leste europeu e asiático. Sua presença na América Latina era discreta e indireta, com algum suporte para os partidos comunistas existentes.

Nesse Brasil do pós-guerra, sob o governo Dutra, havia uma forte política anticomunista. Em maio de 47, o PCB, Partido Comunista Brasileiro, teve seu registro cancelado e seus membros sofreram perseguições. A relação com a URSS já vinha conturbada desde um incidente com um diplomata brasileiro em Moscou que, embriagado, teria iniciado uma briga no hotel em que estava hospedado e quebrado vários objetos. Houve diversas farpas trocadas durante os meses seguintes e o estopim foi em outubro de 47, por conta de um artigo publicado numa revista de Moscou atacando o governo de Dutra. Nesse momento o Brasil decide cortar relações com a União Soviética, para felicidade dos americanos.

Anos mais tarde, com o lançamento de sucesso de seu primeiro foguete suborbital, o Garbosa, em 1951, o Brasil passa a levantar olhares de curiosidade. Era um feito respeitável, mas o foguete era muito pequeno para representar alguma ameaça. Em 53, porém, após o voo de 1000km do Majestoso, surge uma preocupação. Tanto a CIA quanto a KGB inserem informantes dentro do programa espacial (o que não era difícil, por conta das contratações estrangeiras) para monitorar de perto o avanço. Os EUA chegaram a cogitar uma ação mais enérgica – ou uma invasão ou um boicote – para conter essa empreitada tecnológica, mas, nesse momento, eles já estavam lutando uma guerra de procuração na Coreia, entrar em mais um conflito seria muito arriscado. Além do mais, o Brasil tinha cortado relações com os soviéticos, seria mais vantajoso uma aproximação, tendo o Brasil como aliado e uma liderança na América do Sul. É justamente por isso que eles forneceram o motor XLR-11 que o Richard tanto queria. E o fato de ter um americano à frente do programa brasileiro era ainda mais um vínculo positivo, na visão deles.

Nesse momento, a chegada da delegação soviética no Brasil prometia causar grande agitação nas águas da geopolítica.

Capítulo 2 – A Proposta

A reunião ocorreu no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, que nessa época era a capital do Brasil. Ao lado de Café Filho, sentou-se Oswaldo Aranha, o mais importante diplomata brasileiro daquele período. Do lado soviético, além do secretário de relações internacionais e alguns oficiais, estava uma pessoa desconhecida na época, chamado Сергей Королёв, o líder do programa espacial russo (que os brasileiros chamam de Sergei Korolev, mas eu vou sempre me ater à pronúncia original durante esta série).

Sergei Korolëv, chefe do programa espacial soviético.

Palácio do Catete em 1959.

Palácio do Catete em 1959.Mas essa foi só a primeira de uma série de reuniões, todas altamente confidenciais. Ninguém sabia o que estava acontecendo direito. O palácio tinha que ser esvaziado, nenhum cozinheiro, jardineiro, servente, assessor, ninguém podia ficar lá, para evitar qualquer tipo de espionagem ou atentado.

A segunda reunião adicionou o ministro das relações exteriores; a terceira, o ministro da aeronáutica, o tenente-brigadeiro Eduardo Gomes; e a quarta, trouxe o comandante do programa espacial, o major-brigadeiro Henrique Lacerda;

Quando o major voltou para São José dos Campos, quis falar com Richard imediatamente:

— Eles querem alugar uma base de lançamento em Alcântara. Dizem que a base deles fica muito pro norte. Pra lançar um satélite daqui seria mais fácil. Faz sentido?

— Sim, faz. Quanto mais perto do equador, menos combustível precisa para fazer órbita. Eu sei que a base deles fica muito mais ao norte do que a base dos EUA. Então o foguete deles tem que ser maior que o americano. Se eles lançarem de Alcântara, saem da desvantagem e passam a ter a vantagem.

— Teve aquela declaração do Eisenhower prometendo um satélite americano até 58, né? Os russos tão tentando qualquer coisa para largar na frente. Eles querem vencer a corrida, Richard.

— Ótimo, para nós é bom porque podemos cobrar caro para dar essa vantagem, não acha?

— Sim, os valores tão sendo negociados, vai ser uma grana preta… isso se o Brasil topar, claro.

— E por que não toparia?

— Imagina o que os americanos iam achar de uma base de lançamento vermelha por aqui?

— Eles não tem que achar nada, e olha que eu sou americano.

— Richard, Richard… você não entende nada de política mesmo. O mundo não é um cálculo exato, é tudo muito complicado. Começando que essa galera do Eduardo Gomes é tudo anti-comunista. Se não fosse o Oswaldo Aranha pra convencê-lo da grande oportunidade que a gente tem aqui, os russos já tariam voltando sem nada pra casa.

— Entendo, mas, e aí? Vai dar certo?

—  Ninguém sabe, o clima tá muito tenso. Do ponto de vista diplomático, a melhor opção é ter negócios com os dois lados, e até agora o Brasil só tava abraçando o Tio San. Quando tem concorrência, o produto é valorizado.

— Já me convenceu!

— Mas não é você que tem que ser convencido. Deixa lá os diplomatas batendo cabeça. Enquanto isso, a gente tem que discutir o nosso lado. Richard, SUPONDO que isso vá pra frente, o que a gente pode ganhar? O que o programa espacial pode pedir?

— Eu sei exatamente o que pedir, major.

A quinta reunião no Palácio do Catete deveria ter a presença de Richard, mas ninguém achou uma boa ideia promover um encontro de americanos e soviéticos em território brasileiro, de forma que ele mandou seus homens de confiança em seu lugar. Lá ia a nossa dupla dinâmica, Zé e Jayme, entrar em mais um enrosco.

Na volta, eles traziam o resultado:

— Cê tinha que ver a cara deles quando a gente falou de transferência tecnológica, ficaram mais branco que fantasma.

— Então não aceitaram?

— No começo não, mas o major foi amaciando os caras.

— Eu disse que, de repente, não precisava ser o motor mais avançado de todos. Às vezes tinha algum ali meio perdido debaixo da escada, dando sopa.

— Não, não… não é assim major. Não é qualquer motor que vai servir para o nosso foguete orbital. Não é como trocar manteiga por margarina no café da manhã.

— Eu sei, calma… é por isso que a gente levou o Jayme, nosso garoto prodígio. Eu tava lá só de batman mesmo, só pra confundir eles com meu cinto de INutilidades.

— Ei, qual era o meu papel então?

— Você era o Alfred, só pra trazer o cafézinho, haha.

Todos riem.

— Vai ter volta seu major, pode aguardar.

— Eles ofereceram algo sim, chefe. Algo que atende totalmente as especificações… mas… acho que o senhor não vai gostar.

— Conta logo, arranca logo esse band-aid.

— Vão dar para a gente um único exemplar do motor RD-108, que tem 940 kN de empuxo, 315 de impulso específico e dura 280 segundos. É o motor mais avançado que estão fazendo.

Motor RD-108.

— Ora, é perfeito pro nosso foguete.

— Mas… é um exemplar queimado, que já passou por teste estático e parou de funcionar.

— E como vamos usar isso?

— Deixa com o pai chefinho, vou fazer uma engenharia reversa tão caprichada que vai ficar melhor que o original.

— Isso não é como os motores do V-2, Zé… eu sei que você é bom, mas a gente tá falando de algo muito complicado.

— Mas chefe, sobre o motor do segundo estágio, eles estavam irredutíveis.

— Oh no, ficamos sem nada?

— Eu forcei a barra, disse que alguma coisa eles tinham que dar, senão o caldo ia entornar. Coloquei o pé na mesa nessa hora.

— E quase caiu da cadeira hahaha.

Todos riem.

— Hahah, eu consigo imaginar… e então, o que eles ofereceram?

— Por pura coincidência, eles abandonaram o projeto de um motor de foguete para usar em avião, o S-155, que atende a nossa especificação. Fizeram só dois protótipos para colocar no caça Mig Ye-50, mas acabaram desistindo em favor de algum outro motor. Então, eles estariam dispostos a fornecer esses dois protótipos.

— Mas… mas… é um motor para avião.

— Ah, Richard, você mesmo me disse uma vez que esses aviões são tipo um foguete com asas, que podem chegar até o espaço… que diferença faz?

— A diferença, major, é que são motores assimétricos, não dá para alinhar eles no eixo do foguete. Um avião voa na horizontal, o motor inclinado ajuda na sustentação. Mas um foguete não pode ter um motor inclinado, ou ele fica totalmente sem controle. Ahh, não, estamos sem saída agora.

— Caaaalma, chefinho. Deixa que o mordomo vai salvar o dia. Eu tive uma ideia. É uma gambiarra, claro, mas é isso que a gente sabe fazer de melhor. E é algo que os russos nunca imaginaram, senão, aposto que teriam feito no próprio foguete deles.

— Sim, chefe, o Zé me contou no ouvido a ideia dele. É maluca demais, mas pode funcionar. Os russos ficaram surpresos quando a gente aceitou o acordo.

Richard estava confuso. Ele era americano, não era acostumado a trabalhar na base do improviso, da gambiarra, embora ele já tivesse visto diversas provas de que os brasileiros sabiam se virar bem daquele jeito. Mas será que eles estavam indo longe demais?

— Ôoo Richard, abre um sorriso que a negociação foi um sucesso. E vamo brindar AGORA, é só hoje que a gente tem pra isso. Assim que o Tio Sam souber que vai ter uma base soviética em Alcântara, isso aqui vai virar um caos.

Capítulo 3 – O Caos

E foi mesmo. O telefone nos gabinetes do governo não parava de tocar. O embaixador americano exigia uma audiência imediatamente, enquanto os militares do alto escalão quase saíam no tapa uns com os outros. O presidente sofria ameaças dos opositores, a bolsa fechou e o congresso virou um circo.

Eles sabiam que ia ser tenso, mas Oswaldo Aranha tinha negociado algo bom demais para jogarem fora. A grana soviética daria para molhar o bico da turma do Eduardo Gomes e sobraria muito para o projeto de desenvolvimento nacional. O exército receberia tanques soviéticos de segunda linha, os T-34-85, mas que eram superiores aos M-4 Shermanns brasileiros.

Tanque soviético T-34-85.

A condição seria ter uma base permanente em Alcântara por 10 anos, com acesso controlado, da qual poderiam lançar apenas foguetes de missões científicas. Nenhum míssil seria permitido. Também seria vedado qualquer acesso ou suporte soviético a partidos comunistas brasileiros, ou qualquer tipo de influência na política ou economia.

A reação americana foi rápida. Começaram uma propaganda anti-comunista para influenciar a opinião pública, encabeçada pelo Repórter Esso:

— Prezado ouvinte, boa noite. Aqui fala o seu Repórter Esso, um serviço público radiofônico da Esso Brasileira de Petróleo e dos revendedores Esso, testemunha ocular da história. No dia de hoje, foi anunciado um acordo entre o Brasil e a União Soviética concedendo um território permanente dentro do nosso orgulhoso Centro de Lançamento de Alcântara para lançamentos de foguetes soviéticos. Trata-se de uma ameaça à soberania nacional e um forte golpe comunista dentro do país. Não é difícil pensar que esse seja apenas o primeiro passo dentro de um esquema revolucionário orquestrado pelos bolchevistas.

Eduardo Gomes usou sua influência para segurar as forças-armadas e evitar um golpe de estado. O Itamaraty se articulou de maneira eficiente no cenário internacional, acalmando as reações dos países vizinhos e tentando ganhar tempo com o Tio Sam, que cogitou enviar uma força-tarefa militar ao Brasil. Oswaldo Aranha assegurou que a base era puramente para projetos científicos e não era nada além do que uma embaixada russa em solo brasileiro.

O ponto chave seria a opinião pública. Se os brasileiros fossem às ruas protestar, poderia ficar uma situação insustentável. E eles foram.

“Abaixo o comunismo, abaixo o comunismo”.

Só que, em pouco tempo, a contra-campanha começou a vender que esse acordo impulsionaria o programa espacial, e que o Brasil poderia alcançar voos muito maiores. O mais curioso é que, em 1955, o amor pelo espaço já estava se instalando no coração do brasileiro. O “Vai Filhão” já tinha virado uma frase usada no dia-a-dia para desejar boa sorte:

Relaxa, vai dar tudo certo na reunião… Vai Filhão”

Querido, boa prova… Vai Filhão”

De alguma maneira, a cultura do espaço venceu o medo comunista e o jogo se inverteu. As manifestações de apoio cresceram e dominaram o país. O sonho da Lua era maior.

Capítulo 4 – O Peixe

As semanas se passaram e a poeira foi baixando.

O presidente Café Filho passou a ser menos criticado no Congresso e ganhou um respiro de governabilidade – principalmente depois de receber apoio do senador Vitorino Freire e a bancada do Maranhão, que viam no desenvolvimento de Alcântara uma oportunidade de ouro de colocar seu estado no mapa.

Os EUA tentaram uma contraproposta para impedir a base soviética, mas desistiram de seguir nesse leilão. No final, houve uma enxugada geral no apoio que eles davam ao Brasil, o que era esperado, e tiveram que se contentar com esse novo cenário, em que a URSS passava a ter uma vantagem no acesso ao espaço.

Em Alcântara, as obras começaram. Além de uma nova plataforma, um novo prédio de integração e um novo hangar, que seriam exclusivos dos novos inquilinos, era preciso expandir a infraestrutura geral, incluindo a construção de um porto muito grande para receber os navios contendo os equipamentos soviéticos. Em 6 meses começariam a chegar os primeiros engenheiros, que residiriam de maneira permanente em Alcântara. Era esperado um grupo inicial de 150 russos e ucranianos, o que levou a um desenvolvimento na economia da vila de Alcântara e região. Ruas eram abertas, energia elétrica cabeada, saneamento básico criado. A vinda dos estrangeiros estava trazendo prosperidade para aquela região antes esquecida.

Antes disso, porém, já havia um lançamento agendado. Seria um teste de um sistema de mira ainda rudimentar que o exército tinha desenvolvido. Na hora de batizar o foguete, as cientistas Silvia e Vanda ganharam o direito de escolher o nome como um prêmio pela pesquisa delas sobre os efeitos da radiação na fisiologia animal, que foi publicada numa revista estrangeira. Só que as duas não conseguiam entrar num acordo, cada uma querendo dar o nome do seu bicho de estimação.

No final, ninguém lembra mais quais eram os nomes dos bichos, porque a Jamile resolveu o problema de um jeito bem pragmático que só ela era capaz:

— Queridas, se vocês não se decidirem em 10 segundos, eu vou ser obrigada a escrever alguma coisa aqui… Deixa eu ver você chama Silvia e você Vanda né?

E assim, o foguete Laurare 4 Silvanda partiu da plataforma na manhã do dia 23 de abril de 55, fazendo um arco para o leste. Na distância de 900 km a ogiva se desprendeu com sucesso, mas acabou errando seu alvo, uma jangada posicionada a 100 km da costa, e caiu no mar. O sistema de mira ainda estava engatinhando. A FAB teve que pescar a cápsula do mar, bem no momento em que um repórter curioso disparava seu flash. A foto estampou a capa do jornal “O Globo” do dia seguinte, com o título “Um peixe chamado Silvanda”. Dizem que isso viria a inspirar a história de um filme anos mais tarde.

Capítulo 5 – A Lista 

Durante estes meses, a construção do primeiro super avião do Richard, o S-1, estava quase terminando, de forma que agora era preciso contratar os primeiros pilotos de teste. A convocação foi publicada no Diário Oficial. Duas semanas depois:

— Sargento Rocha, você pode me explicar que porra é essa?

— É a lista dos candidatos, senhor major.

— Eu sei que é a lista, sargento. To falando desse nome aqui: Ada Leda Rogato.

— Ah, é o nome de uma candidata…senhor.

— Tu tá querendo quebrar minhas pernas? Uma mulher na lista? Acordei com o general Oliveira perguntando se a gente tava com vaga pra aeromoça. Da onde você tirou que o cargo tava aberto para mulheres?

— Mas não estava senhor. Foi, digamos, um pequeno gracejo da língua portuguesa. Eu escrevi que contratavam-se PILOTOS. O problema é que a palavra feminina para piloto também é piloto. Aí nessa brecha a Ada Rogato entrou. Tive que aceitar.

— Era só o que me faltava. Mas e os requisitos? Você não escreveu que precisava ter 2.000 horas de voo e pelo menos 100 horas de voos acrobáticos? Ou você tá aceitando horas de pilotar fogão também?

— Major, pelos registros aqui, a Ada tem mais de 4000 horas de voo e 250 em acrobacia.

Ada Rogato com seu primeiro avião, o Brasileirinho.

— Hum… mas… ela pilotou algum avião militar? Ou só esses teco-teco da aviação civil?

— Senhor, é impossível ela ter pilotado um avião militar, pois não se aceita mulheres na força-aérea. Mas o nosso programa aqui é civil, não tem porque limitar apenas pra militares. Ainda assim, ela tem aqui deixa eu ver… 213 missões de patrulha para a FAB, no período da segunda guerra, que foi quando os nossos pilotos homens estavam na Itália.

— Sargento Rocha, você sabe que esse nosso programa é para piloto de teste, né? Isso quer dizer que eles vão ter que pilotar aviões experimentais, em condições extremas, com altas chances de dar merda. Tudo que eu não quero é uma mulher chorando porque se arranhou no cockpit. Ela sabe ejetar de um avião, por exemplo?

— Major, aqui no registro diz que ela é a primeira paraquedista do brasil, e a primeira do mundo a fazer um salto noturno sobre a água. E… deixa eu ver aqui… que ela venceu o campeonato brasileiro de paraquedas em 1943.

— Eu nem sabia que tinha campeonato disso… mas, olha, aqui não é esporte não, isso aqui é pra valer, tem que pilotar avião de teste, que não tem nem instrumento direito.

— Bom, senhor, aqui diz que ela foi a única pessoa no mundo a fazer mais de 50.000km em voo solitário pelas Américas, ela foi até o Alasca e voltou. E tudo isso em voo visual, sem instrumentos. E… tem outra coisa interessante aqui. Foi a primeira pessoa (homem ou mulher) a pousar no Aeroporto da Bolívia, o mais alto do mundo, com um avião de 90 cavalos.

— Você só pode tá tirando uma com a minha cara. Ou ela é muito mentirosa. Você checou esses registros em algum lugar?

— Sim, major, senhor. Na verdade, só de condecorações que ela recebeu no mundo todo já fica claro que não é mentira. Consta aqui no registro da FAB de 51 que ela foi a primeira civil (homem ou mulher) a receber as Asas da Força Aérea Brasileira, diretamente das mãos do ministro da aeronáutica, olha só, o seu parça, o brigadeiro Nero Moura.

— Mas… mas…. como é que eu nunca ouvi falar nessa mulher?

— Não sei, major, eu também não conhecia. E aí? Convoco ela pra seleção?

— É… acho que sim. Se o Nero Moura deu a benção pra essa mulher, quem sou eu pra cortar as suas asas.

Epílogo

Você ouviu o sexto episódio de “O Brasil vai pro espaço”, produzido pelo Scicast.

Os eventos narrados aqui, embora fictícios, utilizam como base fatos e pessoas reais da história do Brasil e do mundo. Em especial, neste episódio:

Entre 1950 e 1953 ocorreu a Guerra da Coreia, uma das primeiras guerras de procuração, na qual a Coreia do Norte, apoiada pela China e URSS, enfrentou a Coreia do Sul, apoiada pelos EUA e aliados. Achei que seria um bom argumento para justificar a não interferência americana nesse primeiro momento do programa de foguetes brasileiro.

O identidade do chefe do programa espacial soviético, o Сергей Королёв, era mantida em segredo para evitar alguma tentativa de assassinato. Ele era referido oficialmente como Главный Конструктор (Glavny Konstruktor) ou Projetista Chefe, e apenas após a sua morte em 1966 que seu nome foi revelado. No nosso contrafactual, imagino que ele esconderia sua identidade sob um nome falso ou utilizaria apenas seu título durante a missão diplomática.

Sobre a pronúncia dos nomes, eu busco ao máximo trazer a pronúncia na língua original, ou o mais próximo que seja possível da gente falar sem grandes dificuldades. “Karaliov” não é um nome difícil da gente falar. Mas por que será que muita gente no Brasil fala “Korolev” então? O motivo é por conta da transcrição do russo para nosso alfabeto, que fica K O R O L Ë V. Mas aí é que está a armadilha. No russo, todos os “o”s viram “a”s quando não estão na sílaba tônica. E o ë se pronuncia “io”. Então agora você consegue ver como Korolëv na verdade se fala “Karaliov”.

Oswaldo Aranha foi um dos grandes diplomatas da história do Brasil e presidiu a Assembleia Geral da ONU em 1947 que estabeleceu a criação do Estado de Israel. Em 53 ele foi ministro da Fazenda de Vargas e, depois da morte do presidente, se ausentou do cenário, para voltar depois para a ONU durante o governo de Juscelino. Achamos que seria muito oportuno, então, ele ser chamado para participar de uma mesa de negociação com os soviéticos bem nesse período, faria todo o sentido.

O presidente americano da época, o Dwight Eisenhower, declarou em julho de 55 que os EUA tinha intenção de lançar um satélite durante o Ano Geofísico Internacional, que ocorreria entre julho de 57 e dezembro de 58. Para fins de narrativa, coloquei a declaração dele ocorrendo alguns meses antes, para que pudesse ser trazida na conversa entre Lacerda e Richard.

O Motor de foguete usado em avião, o S-155, que é mencionado nesse episódio, e acaba sendo doado pelos soviéticos durante aquela negociação realmente existiu, assim como todos os outros motores citados nessa série, é tudo real. Mas, o curioso é que de fato esse motor foi abandonado. Eles fizeram só alguns protótipos que seriam instalados nos caças Migs mas, quando os motores a jato começaram a ficar mais potentes e confiáveis, acabaram abandonando o S-155. Então parece muito plausível que eles estivessem dispostos a oferecer esse motor, que estava largado lá e que nem serviria para colocar num foguete, e assim evitar transferir alguma tecnologia mais avançada de motores de segundo estágio.

Sobre a Ada Rogato, foi uma grande surpresa ter descoberto esta mulher incrível, que foi pioneira em tantas façanhas e que estava no auge da sua empreitada exatamente no período que começa o programa espacial. Nesse episódio foi só um gostinho de tudo que ela fez, nos próximos vou continuar contando a sua história, fiquem de olho.

O texto, narração e direção deste episódio foram feitos por mim, o Pena.

Vozes:

Jayme por Lennon.

Zé por Fencas.

Lacerda por Marcelo Guaxinim.

Richard por Pena.

Jamile por Jujuba.

Repórter Esso por Willian Spengler.

Sargento Rocha por Vitor Moreira.

Vozes extras: Sil Perez, Vitor Moreira, Letícia Carvalho, Pena e Felipe Reis.

Consultoria histórica por Willian Spengler, CA e Fencas.

Revisão por Sil Perez

Edição e mixagem por Felipe Reis.

Vinheta e efeitos sonoros por Vitor Moreira e Pena.

E a distribuição é do portal Deviante.

O Brasil Vai Pro Espaço #05 O Grande Assalto

10 de Novembro de 2023, 23:10
Por: Pena

Este é um conteúdo em formato podcast, mas, se preferir, pode acompanhá-lo com o texto e imagens a seguir.

Para ver todas as imagens deste episódio, entre nesta galeria.

Capítulo 1 – Gato Félix

Com a morte do presidente, assume o seu vice, Café Filho, numa posição extremamente delicada. Para aplacar um pouco a pressão, retira Nero Moura do ministério da Aeronáutica, que era homem de confiança de Vargas, e coloca, em seu lugar, o brigadeiro Eduardo Gomes, um dos líderes do partido opositor, a União Democrática Nacional.

Nesse momento, Lacerda teme que todo o programa espacial pudesse acabar imediatamente, pois Eduardo era um daqueles brigadeiros enciumados, que achava que os foguetes estavam ganhando atenção demais.

Porém, no momento em que ele se torna o nome à frente do ministério, os feitos do programa espacial também seriam os seus feitos, e o novo ministro não queria perder essa mídia gratuita. Como seu primeiro ato, Eduardo retira Lacerda do comando de Alcântara e coloca um homem de sua confiança em seu lugar.

Richard não morria de amores por Lacerda mas tinha aprendido a lidar com ele e sabia que o major nutria uma vontade verdadeira em fazer o programa avançar. Por isso, Richard começa uma manifestação que foi seguida por quase todos os 222 engenheiros, técnicos e cientistas do programa, o que acaba forçando o ministro a devolver Lacerda para seu posto. Essa luta Eduardo havia perdido.

As turbulências na política do Brasil continuaram pelas semanas seguintes e por pouco não houve uma tentativa de golpe. Café Filho se segurou pelas pontas dos dedos, fazendo concessões aqui e ali e, aos poucos, as coisas foram se acalmando. 

Antes do ano acabar, ainda deu tempo de lançar um novo foguete:

O Laurare 3 era só um pouco mais comprido que o Laurare 1, pois, na sua ponta, abaixo do cone frontal, havia uma capa cilíndrica dourada cujos adesivos avisavam que uma carga viva estava a bordo. Por baixo dessa capa estava uma cápsula contendo um gato negro chamado Félix.

Lançar animais para o espaço era uma forma de testar os possíveis efeitos do voo dos foguetes na fisiologia humana. A pesquisa com ratos, lançados no Arapuá 4 Ratazana, tinha rendido muito material para os pesquisadores do programa, principalmente para a bióloga Sílvia e a biomédica Vanda. Mas, para dar prosseguimento, era necessário um animal maior. Escolheram um gato gordo e bonito que vivia em Alcântara e aparecia em todos os lançamentos. Zé ficava sempre com o coração apertado quando envolvia animais:

— Já que não tem outro jeito, que seja o Félix então. Pelo jeito que ele gosta de foguete, talvez até queira se tornar o primeiro gatonauta do mundo.

O Arapuá era muito pequeno para abrigar essa cápsula de 1m de diâmetro, então usaram o Laurare para isso.

Dentro da cápsula, Félix ficou preso sob anteparos acolchoados, para evitar que se machucasse, e foi conectado a uma porção de eletrodos que mediam ondas cerebrais, batimentos cardíacos, respiração etc.

A voz de Sergio Cassani no rádio trazia um alívio em meio àqueles tempos difíceis e, durante aqueles 10 minutos, o brasileiro voltou a vibrar e comemorar a cada etapa de sucesso:

— Olha só galera, o Laurare tá chegando a 110km de altura e, atenção… temos confirmação… a telemetria indica que a coifa se abriu, tudo certo… olha só, mais uma confirmação, a cápsula se separou do foguete. Que voo lindo. Agora o nosso gatinho está no espaço, o Félix é o primeiro gato espacial do mundo. E os sinais vitais estão ótimos, parece que ele tá bem.

O Félix chegou a 334km de altura e começou a retornar. Se aproximava a hora tensa da reentrada.

— É, pessoal, a cápsula tá descendo rápido, 60km… 50km… agora é a fase crítica… tá desacelerando rápido, 2.000km/h… olha só, a telemetria tá dando uma falhada, o que é normal por conta do plasma que se forma durante a reentrada… vamo aguardar… atenção… VOLTOU! Temos telemetria, o Félix está vivo galera! E o melhor de tudo, o paraquedas abriu e já dá para ver daqui da torre de transmissão a cápsula no céu… que voo lindo!

O Brasil marcou um gol importante, fortalecendo o programa espacial e, em especial, a posição de Lacerda.

— Richard, você é um filho da mãe mesmo hein… obrigado!

— Agradeça ao Jayme, essa missão foi inteiramente comandada por ele. Eu estou totalmente ocupado com aquela outra coisa…

Essa outra coisa eu conto daqui a pouco, segura a ansiedade aí, mas é fato que Richard estava muito atarefado ultimamente e colocou Jayme como o líder de operação.

Só que foi o Zé o primeiro a chegar até a cápsula para resgatar o Félix. Quando abriu a portinha, o gato só olhou para ele com aquela cara de “Espero ganhar um peixe inteiro por isso”.

Passado o ano novo, havia um lançamento já agendado para o dia 14 de janeiro de 1955, o último foguete para cumprir o contrato com o Instituto de Meteorologia. Jayme, super atarefado com suas novas funções, obviamente deixou para registrar a missão na última hora. Lá ia ele e o Zé, correndo desesperados, para o ENROSCO mais uma vez:

— Boa tarde Jayme… chegou cedo dessa vez hein, 7 minutos para fechar.

— Oi…  Jamile…  por que isso aqui não é no térreo hein? Tá tudo aqui.

— E lá vamos nós. Instrumentos de operação… autorização de voo… aham… área de isolamento… Não acredito! Veio com nome o foguete?

— Viu só, te surpreendi dessa vez.

— Peraí, ele não me contou o nome não, o que tá escrito aí Jamile?

— Pior que é um nome legal: Nimbus.

— Uau, aí sim hein quatro-olho… Nimbus tem tudo a ver, e impõe respeito.

— Cê viu só? E o melhor de tudo, ainda faltam 3 minutos e dessa vez não vou precisar fechar na correria.

— Ahhh, droga… não…

— Não o quê? O que houve?

— To pensando aqui… o primeiro foguete se chamou Farofa. O segundo, Paçoca. Esse vai chamar Nimbus? Poxa… 

— É, pensando assim, acaba não ornando no samba enredo. Mas quem se importa não é mesmo? A criança já foi batizada e eu já tô fechando.

— Não, não… pera um pouquinho… ahh, eu sei que vou me arrepender, mas… cê tem mais algum bicho de estimação, Zé?

— Haha, olha, bicho é que não falta! Corrige aí então Jamile, vai se chamar Pipoca. É o nome do meu periquito.

E assim, a Pipoca explodiu na plataforma… quer dizer, decolou da plataforma (mas olha, com esse nome tava arriscando, hein?). Contrariando seu próprio nome, a Pipoca não explodiu, alcançou 209km de altura e entregou mais dados meteorológicos para a ciência brasileira. Era o décimo segundo lançamento de sucesso seguido, algo quase inacreditável, aumentando ainda mais a confiança no Vai Filhão.

Capítulo 2 – Os Meteoros

Pra eu contar pra vocês sobre o projeto especial do Richard a gente tem que voltar 2 anos.

Em 53 a FAB resolveu atualizar sua frota de aviões de combate do Brasil, que era formada por caças P-47 Thunderbolts. Eram aviões muito bons e voaram pela primeira esquadrilha brasileira durante a segunda guerra mundial, um grupo conhecido como “Senta a Púa”! Mas eram aviões movidos a hélice e estavam ficando ultrapassados com os diversos aviões a jato que começavam a dominar os céus nesse pós-guerra.

O Brasil, então, trocou 15.000 toneladas de algodão com a Inglaterra por 60 caças Gloster Meteor, cada um movido por 2 motores a jato Derwent.

Acho que agora é um bom momento para explicar como esses motores funcionam.

Os motores tradicionais, a hélice, eram grandes motores a combustão, como os de carro, que queimavam gasolina e, em vez de girar as rodas, giravam uma hélice em altíssima rotação. Esse movimento da hélice empurra o ar pra trás, o que faz o avião ir para frente.

O problema é que, para ir cada vez mais rápido, a hélice tem que girar cada vez mais rápido também. Em algum momento, a velocidade da ponta da hélice ultrapassa a velocidade do som, o que causa ruídos e vibrações enormes. Na prática, fica muito difícil fazer um avião com hélice voar mais rápido que 750km/h, ainda mais naquela época.

O motor a jato é bem diferente. A ideia é bem simples. Imagina que você tem uma caixa fechada com um único furo. Dentro dessa caixa você coloca gasolina e acende uma chama. A gasolina vai pegar fogo e os gases vão sair pelo furo em alta velocidade, fazendo a caixa ir para o outro lado. O problema é que, nesse caso, o oxigênio dentro da caixa vai acabar muito rápido e o fogo vai se apagar. Daí você pode pensar, ora, vamos colocar um furo na parte da frente também, para que ar fresco entre enquanto a caixa está voando pra frente, e os gases da queima continuam saindo por trás. Mas aí temos outro problema, pois os gases da queima também vão querer sair pelo furo da frente. Eles vão sair por qualquer lado.

Os primeiros motores a jato tinham uma válvula na frente que se abria para deixar o ar entrar, então a válvula fechava, ocorria uma explosão, e os gases saíam só por trás. Daí a válvula abria de novo e o ciclo se repetia. O nome desse motor é pulsojato, pois ele vai dando pulsos, não funciona de maneira contínua.

Diagrama de funcionamento de um pulsojato. Crédito: Tosaka | Wikimedia Commons.

Resolveram esse problema colocando um compressor de ar na parte da frente. Imagina várias hélices girando rapidamente e socando ar dentro da caixa. A pressão do ar fica bem alta ali na parte da frente, e quando ocorre a queima da gasolina os gases não voltam, eles preferem seguir para a região do furo de trás que tem pressão mais baixa. Pronto, problema resolvido.

Eu sei que um ouvinte perspicaz pode perguntar: mas Pena, agora você precisa de outro motor para girar as hélices do compressor, certo?

Sim, é preciso mover as hélices de alguma maneira, que pode ser usando um outro motor ou, mais comum, usando uma turbina.

Turbina nada mais é que um catavento. Quando o ar passa, o catavento gira.

Os motores a jato costumam ter um catavento na parte de trás do motor. Conforme os gases escapam em alta velocidade eles giram o catavento, que está conectado com a hélice na parte da frente do motor. Então o catavento gira a hélice, que comprime o ar, que fornece o oxigênio para a gasolina queimar, que gera gases em alta velocidade, que saem por trás, empurrando o avião para frente e movendo o catavento, que gira a hélice, que comprime e ar… e… você entendeu.

Diagrama de um turbojato. Crédito: Emoscopes | Wikimedia Commons.

Esse tipo de motor, que usa uma turbina para girar o compressor, é chamado de turbojato. E os caças britânicos Gloster Meteor, ou em português, Meteoro de Gloster, usavam dois turbojatos, um em cada asa.

Quando Richard ficou sabendo que a FAB compraria aviões a jato ficou maluco, tinha tirado a sorte grande. Ele sabia que pra colocar pessoas no espaço eles teriam um longo trabalho de projetar cápsulas grandes, pressurizadas, com aquecimento, oxigênio, suporte à vida e testar isso de alguma maneira. Em vez de fazer foguetes, que aceleram sem parar para o alto e são destruídos a cada voo, seria muito mais inteligente fazer super aviões, capazes de subir além da estratosfera, onde tudo isso poderia ser testado de maneira controlada, para depois retornar intactos para o solo. Um único super avião desse poderia fazer dezenas de voos de teste, cada um aprimorando uma ou outra coisa.

Mas isso não era tudo. Um dos grandes desafios era testar os seres vivos em velocidades extremas. Os americanos já tinham voado, em 47, mais rápido que o som e, desde então, se sabia que o ser humano poderia sobreviver ao choque supersônico. Mas, para garantir que cápsulas e equipamentos não fossem comprometidos durante a quebra da barreira do som, era preciso recriar essas situações de maneira controlada. Num foguete isso tudo é muito rápido. Um super avião supersônico seria muito mais útil, ainda mais se ele conseguir acelerar a velocidades realmente altas, 2, 3, 4 vezes a velocidade do som.

E por fim, mas não menos importante, era preciso começar a treinar astronautas para aguentarem essas situações extremas, se adaptarem, aprenderem a suportar as acelerações do lançamento e da reentrada, a manobrar cápsulas no vácuo etc. Isso tudo leva muito tempo e quanto antes começar, melhor. Um super avião supersônico resolvia todos os problemas de uma só vez.

Só tinha um problema: fabricar um super avião desse era tão difícil quanto fazer um foguete, senão mais. Seria preciso motores a jato e o Brasil ainda estava na hélice.

Mas isto estava para mudar com a importação dos Meteoros de Gloster.

— Peraí, Richard, deixa eu ver se entendi. Você quer que eu extravie um jato novíssimo que a gente vai comprar da Inglaterra para você desmontar ele e tentar fazer um Frankenstein?

— Olha, major, eu quero muito mais que isso na verdade, mas não quero te assustar.

— Se esse era seu objetivo você já falhou. Você realmente acha que dá para pegar um jato que não chega na velocidade do som, trocar algumas peças de lugar e fazer ele milagrosamente voar 2 vezes mais rápido? Olha, se isso fosse possível, eu garanto que os Ingleses já teriam feito.

— Não, claro que não. Eu quero que a FAB, além de doar um Meteor, um Meteoro, compre dois motores de ponta, o Avon 107, que os britânicos estão usando no novo caça deles, o Hawker Hunter. Se com um motor desse o Hunter já passa a velocidade do som, imagina dois no mesmo avião. Aí sim, posso usar as peças do Meteor para criar UM dos meus super aviões.

— Como assim UM? Richard, você tá realmente conseguindo me assustar! 

— Também quero que a FAB compre um motor de foguete americano, o XLR-11.

— Peraí, a gente já tem motor de foguete aqui, por que você quer outro?

— Esse é um motor de foguete feito para ser usado em avião. Dá para ligar e desligar ele no meio do voo e também dá para diminuir a potência. É um motor antigo, que foi usado em 1947 no avião X-1, o primeiro a quebrar a barreira do som. Eles vão vender pra gente.

— E você vai querer fazer um SEGUNDO jato a partir desse motor…

— Jato não, não é um motor a jato, é um motor de foguete. Seria mais um avião-foguete, um rocket-plane. Esse é para chegar alto, além da estratosfera.

— Ok, chega, essa loucura já foi longe demais. Você já me assustou o suficiente. Não tem nenhuma chance desse delírio acontecer.

Levou 2 dias para Richard convencer Lacerda de como aqueles super aviões seriam fundamentais para o programa tripulado. E outros 3 dias para convencer de que ele, Richard, seria capaz de projetar um avião desse a partir de peças de um Meteoro.

E mais 3 dias para Lacerda checar com Jayme se, hipoteticamente, seria possível criar um super avião daquele.

— Sim, senhor, major, senhor. Fiz todos os cálculos e, em teoria, é possível uma carenagem de duralumínio suportar 3x a velocidade do som se voar acima de 20km. Mas claro que o regime supersônico cria frentes de onda destrutivas dependendo da geometria do avião. Precisa ser alguém muito bom para projetar algo assim, eu não me arriscaria senhor.

E mais 3 minutos para checar com o Zé se haveria alguma possibilidade de converter peças de um avião em outro.

— Claaaaro, major, seu major. Se sou eu que vou fazer o serviço, tranquilo, dá para transformar até num balão se o senhor quiser, vem na minha.

Lacerda estava convencido mas ele não era o dono dos aviões. Quando Nero Moura era o ministro da aeronáutica, o major tinha muito mais influência: eles eram amigos e tinham o mesmo alinhamento político. Com Eduardo Gomes a história era bem diferente.

Não teve como, por mais que os argumentos de Lacerda fossem sólidos, amparados por relatórios do Jayme e um currículo respeitável de Richard, tava claro que o ministro queria dar o troco no Lacerda por ter sido obrigado a o engolir. Dessa vez Eduardo Gomes venceu.

— A cara de pau daquele engomadinho dizendo “Desculpa Lacerda, mas todos os 60 jatos serão fundamentais para os novos planos da FAB, não dá para abrir mão de nenhunzinho”. Que filha da mãe.

— Deixa pra lá, mas obrigado por tentar, comandante…  a gente vai levar pelo menos 5 anos a mais para criar um programa tripulado, mas um dia sai.

— Peraí… acho que to tendo uma ideia idiota. Ele disse que precisa de todos os 60 jatos… talvez tenha um jeito de… não, não… seria muita loucura, além de extremamente arriscado.

— Me conta mais sobre isso, major.

Capítulo 3 – O Grande Assalto

Olhando o contrato, Lacerda sabia que esses 60 jatos viriam desmontados e seriam entregues no porto do Rio para serem remontados na Fábrica do Galeão. A Fábrica era um galpão enorme que fazia parte da Base Aérea do Galeão, uma base militar na Ilha do Governador situada onde, hoje, é o Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, ou mais conhecido como Aeroporto do Galeão.

Fábrica do Galeão, RJ.

A tal Fábrica do Galeão era o único local no Brasil, naquela época, capaz de construir aviões. Os projetos eram licenciados de fora e os engenheiros eram treinados para poder construir as peças e montar de acordo com o “manual de instruções”.

Lacerda, como quem não quer nada, convenceu o comandante Barbosa, responsável pela Base Aérea do Galeão, de que seria importante os professores e alunos do ITA fazerem uma visita durante a montagem dos Meteoros, para que pudessem aprender com a tecnologia estrangeira.

Nas férias de julho de 1953, 50 integrantes do ITA passaram a circular pela Fábrica do Galeão auxiliando na montagem dos novos aviões e aprendendo um monte de coisa sobre a engenharia daqueles motores a jato. Esse conhecimento todo seria muito valioso para o próprio programa no futuro.

Mas havia quatro pessoas, dentre esses 50, que estavam lá por um ganho mais palpável e imediato.  Lacerda, Richard e seus dois homens de confiança, Zé e Jayme, tinham uma missão especial a cumprir.

Pelo contrato, a Gloster iria fornecer, além dos 60 jatos, diversas peças e motores sobressalentes, para suprir pelo menos uma década de possíveis reparos dos aviões da nova frota. Isso significava que havia peças extras suficientes para montar, inteirinho, pelo menos mais 8 Meteoros.

O plano seria, então, sequestrar metade daquelas peças. Ninguém daria falta daquilo em pelo menos uns 5 anos.

No meio daquele fuzuê todo, cheio de professores, alunos, técnicos e engenheiros andando pra lá e pra cá, os 4 gatunos aguardavam o melhor momento para surrupiar uma roda de trem de pouso, um cabo de aileron ou uma turbina de motor e levar, discretamente para o caminhão do ITA, que estava estacionado na porta do hangar.

Era um trabalho de formiguinha, que consumia muito tempo. A cada dia, eles conseguiam garimpar só umas 20 ou 30 peças. Por sorte, eles tinham um mês inteiro para isso.

Lacerda ficava no lado de fora do hangar, cuidando do caminhão e conferindo quais componentes ainda faltavam naquela longa lista de mais de 500 itens. Era dele também a tarefa de avisar, por um walkie-talkie, quando a ronda dos guardas passava por ali:

A águia voltou para o ninho, repito, a águia voltou para o ninho.

Jayme, instalado no almoxarifado sob o pretexto de ajudar a organizar o caos, tinha a responsabilidade de separar os componentes sobressalentes para que Zé e Richard os levassem:

O jantar está servido: dois petiscos e uma lasanha no forno 2.

Zé e Richard, que eram ótimos engenheiros de campo, ficavam na linha de frente, ajudando na montagem das aeronaves e saindo vez ou outra para buscar componentes no almoxarifado e levar até a linha de montagem. Quando Jayme passava o código, eles esperavam o momento mais caótico para subtrair as “iguarias” e levar até o caminhão.

Jayme, então, apagava cuidadosamente o registro daqueles itens no inventário, eles não poderiam deixar pontas soltas.

Foi um longo mês de trabalho, mas provavelmente o mais produtivo de todos. Cinquenta professores, alunos e pesquisadores tinham, no final, adquirido um conhecimento prático extremamente valioso sobre aviões a jato, tinham acelerado em muito a construção daquelas aeronaves que já entrariam em serviço pela FAB a partir daquele mesmo ano, e, como bônus, tinham saído com um caminhão carregando 4 Meteoros desmontados, rumando diretamente para São José dos Campos, para o edifício do IPD.

No fim daquele ano, perto do Natal, chegaram os últimos presentes tão aguardados por Richard – pelo jeito ele tinha sido um bom menino. Dois motores Rolls-Royce Avon 107, de última geração. E um motor de foguete XLR-11.

Motor XLR-11.

Richard levou 8 meses para desenhar o primeiro avião. Esse era o rocket plane, ou avião foguete, que recebeu a sigla de S-1 (o primeiro avião de Smith). Em outubro de 54 começou a sua construção, liderada por Zé e mais 30 engenheiros, enquanto Richard projetava o segundo super-avião.

Em fevereiro de 55 o S-1 estava pela metade e Richard havia finalizado o projeto do S-2.

Eles estavam confiantes e queriam anunciar o programa de maneira oficial.

Na política as coisas estavam se acalmando, Café Filho se mantinha no poder e aparentemente os movimentos de golpe militar tinham perdido força.

Mas se depois da tempestade vem a bonança, depois da bonança vem a tempestade.

Em 12 de fevereiro de 55, uma delegação da União Soviética aportou em território brasileiro, sem nenhum aviso prévio, querendo falar diretamente com o presidente.

Epílogo

Você ouviu o quinto episódio de “O Brasil vai pro espaço”, produzido pelo Scicast.

E dessa vez tem um monte de detalhes e curiosidades históricas, vamos a elas:

Eduardo Gomes foi de fato o ministro da Aeronáutica no governo de Café Filho, entrando no lugar de Nero Moura para aliviar a pressão que a FAB estava fazendo. Nessa época, o brigadeiro Eduardo já era influente na política e tinha se candidatado à presidência duas vezes, em 1945 e em 1950. Na sua campanha política de 45, algumas mulheres paulistanas criaram um doce feito de leite condensado que era vendido em festas para angariar fundos para a candidatura. A guloseima fez sucesso, e muita gente ia até os comícios só para provar os doces do brigadeiro. O candidato perdeu as eleições, mas seu doce foi com certeza eleito, pois se tornou um dos mais tradicionais da culinária brasileira: o famoso brigadeiro. Só que no Rio Grande do Sul, diferente do resto do país, eles chamam o doce de “negrinho”, e o motivo também é político. Vargas, que era gaúcho, tinha uma base de apoio enorme no seu estado de origem, e as pessoas se recusavam a chamar o doce por um nome que remetia ao rival político. 

Aproveito esse assunto para contar para vocês de onde vem a expressão “Céu de Brigadeiro”, que se diz de um céu limpinho, sem nuvens. Por ser uma patente elevada na hierarquia militar, os brigadeiros costumam ser mais velhos e, por conta do cargo, ficam mais em terra, em tarefas burocráticas. Geralmente não pilotam um avião a tempos. A expressão é um tipo de zoeira que os aviadores fazem para dizer que os brigadeiros são tão maus pilotos que só conseguiriam voar num tempo perfeito.

Os primeiros animais enviados ao espaço foram moscas em 1947, e o primeiro mamífero foi o macaco Albert II em 49, ambos a bordo de um foguete V-2. Durante a década de 50, os EUA lançaram vários animais, principalmente macacos e ratos, mas, infelizmente, a taxa de mortalidade era muito alta por conta de falhas no foguete ou no paraquedas.

É difícil saber quantos animais os soviéticos lançaram, pois eles só divulgavam os casos de sucesso. Sabe-se que em 51 os cachorros Tzigan e Dezik foram os primeiros seres vivos complexos que foram recuperados com vida.

O Brasil seria o primeiro país a lançar um gato para o espaço, em 1959, a bordo de um foguete construído pela Escola Técnica do Exército, a ETE. O gato escolhido se chamava Flamengo e o foguete recebeu o nome de Félix I. Houve vários contratempos com esse lançamento, incluindo manifestações da “Sociedade Protetora dos Animais”. No entanto, o foguete nunca foi lançado e o motivo eu sinceramente não sei ao certo.

Eu comprei um livro chamado “Coronel Lage: O mestre dos foguetes” em que grande parte das suas 237 é tratando apenas do foguete Félix. O livro apresenta todas as declarações, matérias, entrevistas e reportagens da época sobre esse lançamento que acabou ganhando um destaque gigantesco pela imprensa. A história é simplesmente complexa demais para eu tentar resumir, mas é possível que o motivo final do não lançamento tenha sido uma briga de egos dentro da ETE.

Para ilustrar, trago uma notícia do Jornal do Brasil de julho de 59 com o título: “Ciúme é o que impede voo do Félix I”, relatando que ““um porta-voz do Curso de Armamento da ETE” teria dito que “se não fosse o ciúme que a construção do Félix I provocou entre os oficiais do Estado-Maior do Exército, o foguete já teria sido lançado há muito tempo”.

Essa história é tão icônica que eu me senti obrigado, na nossa realidade alternativa, a realizar finalmente o lançamento censurado, e assim dei o nome do nosso gatonauta de Félix.

A Fábrica do Galeão foi de fato um hangar enorme onde hoje é o Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, e produziu aviões estrangeiros licenciados. Na década de 30, havia um acordo com a empresa alemã Focke-Wulf que levou à construção de 40 biplanos e 25 bombardeiros mas, quando o Brasil entra da Segunda Guerra, a parceria com a Alemanha é quebrada e a Fábrica passa a construir aviões americanos da empresa Fairchild e, na década de 50, modelos da Fokker, holandesa.

Fábrica do Galeão em 1942. Montagem de um Focke-Wulf 58.

Também é verdadeira a importação dos 60 Meteoros de Gloster em 53, que chegaram pelo mar e foram realmente montados na Fábrica do Galeão. Nas minhas pesquisas encontrei um Meteoro de número 61 que foi inteiramente montado com peças sobressalentes e que está hoje exposto no Museu Aeroespacial no Rio. Isso me inspirou para criar a história desse grande assalto. Então, meus amigos, por mais absurda que pareça essa ideia de montar aviões com peças de estoque, ela é totalmente plausível e um plano desse poderia ter acontecido de verdade.

Caça Gloster Meteor n°61 no Museu Aeroespacial. O distintivo é do grupo “Senta a Púa”.

Pra finalizar, os EUA tinham realmente um programa com aviões experimentais extremos, chamados X-planes, movidos com motores de foguete, com o objetivo de alcançar velocidades e altitudes cada vez maiores em voos tripulados. Em 14 de outubro de 1947, o lendário piloto de teste Chuck Yeager foi o primeiro humano a quebrar a barreira do som voando a Glamorous Glennis, um avião experimental movido pelo motor XLR-11, o mesmo que foi importado pelo Richard.

Chuck Yeager com o avião experimental X-1 Glamorous Glennins.

O texto, narração e direção deste episódio foram feitos por mim, o Pena.

Vozes:

Cassani por Sacani

Jayme por Lennon

Zé por Fencas

Lacerda por Marcelo Guaxinim

Richard por Pena

Jamile por Jujuba

Consultoria histórica por Willian Spengler, CA e Fencas.

Consultoria técnica por Lennon

Revisão por Sil Perez

Edição e mixagem por Felipe Reis.

Vinheta por Vitor Moreira

E a distribuição é do portal Deviante.

O Brasil Vai Pro Espaço #04 Lacerda

3 de Novembro de 2023, 20:31
Por: Pena

Este é um conteúdo em formato podcast, mas, se preferir, pode acompanhá-lo com o texto e imagens a seguir.

Para ver todas as imagens deste episódio, entre nesta galeria.

Capítulo 1 – Lacerda e Richard

Passado o alvoroço, Lacerda vai falar diretamente com Richard, sem intermediários dessa vez.

– Como assim você sabia? Por que não falou nada? Richard, você faz ideia da situação que colocou a gente?

– Claro que sei, a situação que te dei um míssil de 1000km em um tempo recorde.

– Mas ele explodiu…

– Não é isso que mísseis fazem? haha

– Escuta aqui… para de gracinha… eu tenho uma reunião muito séria com o ministro da aeronáutica daqui meia hora. Eu preciso explicar alguma coisa para ele.

– Lacerda…

– Major-brigadeiro Lacerda.

– Major-brigateiro Lacerda… eu não imaginei que vocês brasileiros iriam considerar isso um fracasso. Claramente vocês não tem experiência de foguetes, pois este seria considerado um sucesso total nos Estados Unidos.

– E claramente você não tem noção da situação delicada que a gente se encontra, Richard.

– Doutor Richard. Mas tá bom, eu vou explicar. A nossa parte, que era fazer o foguete controlado, que carrega 250kg até um alvo a 1000km nós fizemos. E sinceramente, foi algo muito muito incrível, você deveria dar uma medalha para gente. É claro que ele ia explodir ao entrar na atmosfera. Um objeto oco de 15m de comprimento a 10.000 km/h se chocando com a atmosfera, não tem como.

– Isso só pode ser uma piada. Então como é que os mísseis V-2 acertavam Londres na segunda guerra, hein?

– Ah, era uma distância muito mais curta, 200, 300km, então a velocidade de entrada é muito menor também. Se o Laurare voar 300km ele não explode…

– Hum… então não dá para acertar mais longe do que isso?

– Dá sim, mas tem que separar a ogiva do resto do foguete. A chance de só a ponta sobreviver a entrada é bem maior que o foguete inteiro. Mas essa parte é com vocês, não com a gente.

Aqui eu preciso explicar uma coisa que talvez esteja confusa. O que será que o Richard quer dizer com “essa parte é com vocês, não com a gente?”.

Quando o programa espacial teve início, a maioria dos contratados eram estrangeiros que entraram no esquema idealizado por Richard de trazer professores para o ITA e ao mesmo tempo cérebros para o programa da FAB.

Mas logo começou uma discussão complexa sobre segurança nacional. Se esses estrangeiros começassem a desenvolver tecnologias de guerra para o Brasil, seria uma falha de segurança para o futuro, em que eles poderiam eventualmente retornar para seus países e revelar detalhes sobre o armamento brasileiro. Ao mesmo tempo, não havia brasileiros natos capazes de tocar o programa sozinhos, essa transferência de conhecimento estrangeiro era uma oportunidade boa demais para desperdiçar.

A solução foi criar um novo órgão, a Agência Espacial Brasileira, que seria apenas civil e poderia receber estrangeiros. Caberia a ela desenvolver todos os sistemas e componentes não bélicos, como os foguetes, motores, sistemas de controle, sensores etc, enquanto a Força Aérea e o Exército ficariam incumbidos de preparar as ogivas, explosivos, sistemas de aquisição de alvos, sistemas de mira e de detonação.

Porém, mesmo a AEB (Agência Espacial Brasileira) sendo um órgão civil, ela estaria sujeita ao comando da FAB e seria financiada também pela Força Aérea. A própria base de Alcântara, nesse momento, é uma base militar que cederia parte de suas instalações para a AEB poder fazer suas operações.

Mas Richard tinha razão, a parte que cabia à Agência Espacial tinha sido feita. O foguete Laurare, mesmo explodindo na atmosfera, tinha cumprido totalmente seu objetivo. Cabia a FAB desenvolver a ogiva que se desprenderia do foguete e faria a reentrada, para então acertar seu alvo.

– Tá, entendi agora. Mas por que você não me avisou antes? Olha só a capa do Jornal do Brasil: “Foguete Brasileiro Explode no ar, estamos indo longe demais?”

– Eu não tenho culpa que ninguém entende de foguetes, você pode explicar para eles, ou então pedir para aquele narrador, qual o nome dele, Sacani, Casani, participar de uma press conference… como fala isso?

– Coletiva de imprensa?

– É, coletiva… as pessoas ouvem ele.

Capítulo 2 – Lacerda e Zé

É curioso que aconteceu igual no futebol. Os brasileiros gostavam dos foguetes mas não entendiam nada. Era preciso começar a educar as pessoas, incluindo os militares de toda a cadeia de comando.

A coletiva de imprensa foi um sucesso. Além do Lacerda, representando a FAB, estava o Jayme como Diretor de Lançamento e o Sergio Cassani como… intermediador para assuntos de foguete.

Aos poucos, a imagem de fracasso foi se transformando em sucesso e motivo de orgulho. Afinal, o Brasil havia lançado em tempo recorde um foguete suborbital de respeito.

Depois do ano novo, Lacerda agenda outra reunião com Richard, mas dessa ele conseguiu escapar. Mandou o Zé no lugar:

– Olha só, parece que você ficou mais queimado do sol, Richard?

– Ahh que engraçado… eu também preferia não tá aqui… major. Qual a boa?

– Hoje eu tô de bom humor. Depois que a gente desfez aquele imbróglio todo, da explosão e tudo mais, as coisas começaram a melhorar, vamo começar 53 com o pé direito. 

– Opa!

– O ministro Nero Moura autorizou a expansão do Centro de Alcântara e a contratação de mais 30 engenheiros.

– Aeee major, aí sim, nunca duvidei do senhor.

– Mas claro que tudo tem seu preço, não é mesmo? O alto comando concorda que toda a parte da ogiva tem que ser feita internamente, porém… eles entendem que o sistema de desacoplar a ogiva é responsabilidade da AEB. Acho que é razoável, não acha?

– É, tá, faz sentido. A gente já tem uns desacopladores que funcionam bem, é só fazer maior.

– Perfeito, então precisamos de um próximo lançamento para fazer essa prova de conceito. Vamo lançar um pedaço de concreto simulando a carga explosiva e fazer ele chegar até o chão… sem explodir dessa vez.

– Hum… major… se me permite. Assim, a gente até pode lançar um bloco de concreto e tudo mais, mas não vai ser uma oportunidade perdida? Não seria mais interessante a gente usar esse lançamento para mandar algo útil pro espaço? Sabe, cada lançamento custa muito dinheiro.

– Não sei, rapaz, eles pediram só uma prova de conceito. Você tem alguma sugestão?

– Olha… major… a gente andou pensando sobre isso lá no IPD. O pessoal tá desenvolvendo uma câmera fotográfica capaz de aguentar o vácuo do espaço, e que poderia tirar fotos da Terra lá do alto. A câmera é muito grande e pesada, por conta do isolamento, não cabe no Arapuá… mas cabe certinho no Laurare. Imagina só, essas primeiras fotos do espaço saindo nos jornais. E claro que a gente precisa recuperar a câmera para revelar as fotos, então já testamos o desacoplador.

– É Zé o seu nome né… 

– Uhum…

– Não tem nenhuma chance disso dar errado não né?

– O desacoplador? Não, tá tranquilo… pode confiar major, vem na minha…

A construção do Laurare número 2 começou a todo o vapor, mas já havia outro foguete na fila, o Arapuá 5, encomendado pelo Instituto de Meteorologia. E é claro que o Jayme deixou para a última hora pra fazer o registro da missão. Lá se foram ele e o Zé correndo desesperados para o ENROSCO, ou “Escritório de Normativas e Registros Orbitais, Sistemas e Controles”:

Boa tarde Jayme… nossa, que surpresa vê você aqui 5 minutos antes de fechar.

– Jamile… boa tarde.. ahhh … tá aqui ó, autorização de voo, área de isolamento…

– Uhum… certo… instrumentos de operação?

– Aqui, aqui… ops… aqui ó!

– E o nome da missão?

– Ahh não… esqueci de novo.

– Eu tenho um nome.

– Não, Zé, sem chance, pode deixar que dessa vez eu escolho. Éeeee…

– 2 minutos.

– Jamile, você para com essa tortura psicológica.

– Meu querido, chama relógio e ele funciona mesmo quando eu não to olhando pra ele.

– Tá, tá, deixa eu pensar aqui… éeeee… Meteoro… sabe, uma piadinha com Meteorologia…

– Tem certeza?

– Ahh não, que nome merda… ajuda Jamile.

– Ei, você não quer nem saber minha sugestão?

– Não… já imagino o que vai vir, prefiro a sugestão da Jamile.

– Hã, deixa eu ver, que tal “Seis e Quinze”… que é a hora do meu ônibus e eu já tô fechando.

– Hahaha, gostei.

– Não, sem chance, vocês tão acabando com nosso foguete.

– Se você não falar nada em 15 segundos vai se chamar “Sem Nome”.

– Não! calma… éeeee. Ahh droga, tá Zé, fala o seu, vai.

– Anota aí Jamile: Paçoca. É o nome da minha tartaruga.

E assim, no dia 3 de abril de 53, a Paçoca fez um lindo voo, subindo até 218 km, bem acima da Farofa, com 110km. O motivo é que, além do tanque de alumínio, instalaram um novo motor de combustível líquido, mais eficiente e com mais empuxo, desenvolvido durante o último ano pelo IPD. O investimento em pesquisa, vigorosamente defendido pelo Richard, estava dando frutos.

Quase 4 meses depois, no dia 21 de julho, todos os olhares estão atentos na plataforma do Laurare onde o Curioso se ergue imponente, quer dizer, nem tanto imponente. A nova câmera é um cilindro branco que foi adicionado logo abaixo do cone frontal, estendendo-se como um pescoço por um metro e meio, até se encontrar com o resto do corpo do foguete, através de um desacoplador. Do meio do cilindro projetam-se dois círculos de vidro, as duas lentes da câmera, que mais parecem olhos. O aspecto final é de um boneco de Olinda desengonçado, com chapéu pontudo e olhos penetrantes. Por ser um foguete que vai observar a Terra lá de cima, tinha que chamar Curioso.

Às 9:35 da manhã o Curioso dispara para o céu, fazendo um arco para Leste. Mas, diferente do voo do Majestoso, esse foi um pouco mais para o Sul, para sobrevoar a costa brasileira e cair sobre a terra. Se caísse no mar, seria muito mais difícil de recuperar a câmera e teria o risco da água estragar o filme.

O foguete chega a 234km de altura, atinge o espaço e começa a retornar para a Terra. Aos 100km o desacoplador é acionado com sucesso, separando a “cabeça” do resto do corpo. Agora começa a fase crítica. O cone frontal faz a entrada na atmosfera: a temperatura dispara chegando a 800 graus em segundos e faz o cone brilhar num vermelho intenso. Essa é a única parte do foguete que é feita de aço. Se fosse alumínio derreteria a essa temperatura. Em apenas 10 segundos a velocidade é reduzida de 7.400 km/h para 1.400 km/h. Mas dessa vez, a telemetria não cai e a cápsula sobrevive à reentrada. Sucesso.

Um jipe do exército recupera a câmera numa colina perto de Guaramiranga, ao Sul de Fortaleza.

Ao todo, a câmera tirou 240 fotos. A maioria está tremida, borrada ou mostra apenas o vazio do espaço. Mas tem umas 20 fotos absolutamente impressionantes, retratando a costa brasileira reluzindo sob o sol. É possível ver a curvatura da Terra e a fina espessura da atmosfera. São fotos tão deslumbrantes que estampam a capa de praticamente todos os jornais do dia seguinte. O Brasil conseguiu mais um marco importante no programa espacial.

Capítulo 3 – Lacerda e Jayme

As fotos chegam no café da manhã a centenas de milhares de brasileiros e se tornam o assunto do almoço nos escritórios. Os militares ficam satisfeitos e a AEB começa a preparar um novo projeto. Em setembro, porém, Lacerda marca uma nova reunião com Richard, mas é Jayme que aparece.

– Jayme, meu garoto prodígio. Eu sei que a gente tá criando a nova cápsula mas, acho que temos uma oportunidade aqui.

– Ótimo senhor, major, sou todo ouvidos.

– O alto comando tá querendo saber até onde podemos ir em termos de distância. Eles querem desenvolver um sistema de mira, mas precisam ter uma noção do máximo que o sistema tem que alcançar. Não querem fazer algo que vai ficar obsoleto em pouco tempo.

– Ah, perfeito, senhor. Eu consigo facilmente calcular a trajetória máxima a partir de um foguete hipotético. Vamos supor um motor melhorado, com, digamos, impulso específico de 270 segundos, e uma massa inicial de, sei lá, 30 toneladas…

– Calma, calma, garoto. Acho que você não tá entendendo. Eu tenho certeza que você pode fazer esses cálculos mais rápido do que eu consigo dizer. Mas eu disse para eles que estimar isso era muito muito difícil, que tinham muitas variáveis, curvatura da terra, campo magnetosfoférico e tudo aquilo que você tentou me explicar uma vez.

– Mas, senhor, acho que eles querem só um alcance aproximado. E mesmo que eles queiram algo preciso, se me der duas semanas eu posso calcular tudo isso… dá trabalho mas é possível.

– Claro que consegue Jayme, mas eles não sabem disso. Eles tão achando que o melhor jeito de descobrir é a gente lançar outro foguete.

– Hum… outro foguete?

– É nossa oportunidade de pegar mais verba pro programa espacial e financiar as coisas que a gente quer fazer de verdade, percebe?

– Claro, major, nossa, mas… eu não sabia que o senhor tava tão engajado na AEB, senhor.

– Digamos que… a FAB é um vespeiro e a gente tá querendo trazer o mel pra colmeia certa.

Jayme pensou em comentar que vespas não fazem mel mas achou que, naquele momento, aquilo não seria exatamente relevante.

– Jayme, que foguete a gente pode fazer para chegar o mais longe possível com o que já temos desenvolvido?

– Senhor, podemos fazer algo que o Richard idealizou faz tempo. Colocar o segundo estágio do Arapuá em cima do Laurare e lançar um foguete muito mais poderoso, de 2 estágios, senhor.

– E isso vai ajudar o programa espacial?

– Sim, senhor, muito. Vamos poder testar novos sistemas de navegação e rastreio e obter dados importantes de condições extremas, fundamentais para um programa orbital.

– Ótimo garoto, diz pro americano que esse vai ser meu presente de aniversário para ele.

– Major… major, você é o cara!!!

Jayme perde completamente o protocolo, dá um abraço no Lacerda e começa a pular. No primeiro momento o major se deixa levar, e após darem uma meia volta pulando, alguma sanidade retorna ao comandante que se desvencilha.

– Garoto, garoto… não seja atrevido.

No dia seguinte, todos os engenheiros param tudo que estão fazendo e passam a se dedicar totalmente ao desafio de integrar o Arapuá com o Laurare. O nome do novo foguete foi fácil “Arapurare”… meio abelha, meio marimbondo.

Quando o Jayme contou toda a reunião que tivera com Lacerda, incluindo a parte final do “garoto, não seja atrevido”, aquilo virou uma piada interna imediatamente:

– Já vou começar a usinar o atuador amanhã.

– Tem certeza Zé? Não seja atrevido.

 

– Quem resolveu colocar um sensor de pressão na linha de peróxido, hein? Que atrevido!

Foram 6 meses para fazer a integração e no dia 12 de março de 54 lá estava o Arapurare 1 Atrevido na plataforma.

Era difícil saber quão longe ele poderia chegar pois havia uma série de melhorias que os pesquisadores e engenheiros tinham criado desde o primeiro lançamento do Majestoso.

A começar pelo motor. A cada novo protótipo de teste a equipe do Zé ou removia peso desnecessário, ou ampliava os bicos injetores, ou aumentava a pressão na câmara de combustão. Depois desse um ano e quatro meses, o motor já não se parecia mais com aquela cópia do XLR-41.

Os tanques de alumínios também foram atualizados. A nova técnica usava barras compridas, chamadas longarinas, que passavam por dentro da estrutura para resistir aos esforços verticais. Isso quer dizer que as paredes dos tanques não precisavam mais aguentar tanta força, apenas o suficiente para segurar os líquidos, e podiam agora ser bem mais finas e leves.

Os sistemas de controle eram aprimorados a cada novo foguete e também estavam bem mais leves.

Minutos antes do lançamento, eles faziam apostas:

– Uma rodada no boteco da Tereza que vai passar de 2.000 km. E você Zé, o que acha?

– Ah, sei lá… acho que o segundo estágio vai dar problema e não bate 1.500km. E você comandante?

– Eu realmente espero que esse segundo estágio não dê problema, viu senhor José Alves. Vou de 2.300. Richard?

– Éeee vai funcionar, 3.000.

– Uau, que otimismo. Assim que eu gosto. Jayme?

– 4.385km, considerando um vento de noroeste.

No final, ninguém sabe quem ganhou porque o Atrevido simplesmente foi longe demais e saiu do radar da Barreira do Inferno. A telemetria caiu minutos depois dele alcançar a altura impressionante de 1.160km, um recorde brasileiro. Jayme jura que venceu porque ele fez as contas a partir dessa altura e disse que o foguete chegou a mais de 4300km, mas ninguém estava sóbrio o suficiente nessa hora para checar as contas. Foi claramente um resultado muito além do que a maioria estava esperando, e o Richard resolveu o problema:

– Tereza, pode por a rodada na minha conta.

É claro que outro lançamento era necessário, e dessa vez a FAB pediria para a Marinha colocar um navio no meio do Atlântico, equipado com antenas de rastreio, para monitorar o voo do novo foguete, o Arapurare 2.

Nessa época o Brasil acumulava 9 lançamentos consecutivos com sucesso, algo que só poderia ser explicado pela mandinga do “Vai Filhão”, que estampava todos os foguetes. As narrações do Cassani eram repetidas na TV e no rádio, e começaram a surgir as primeiras caravanas para assistir aos lançamentos ao vivo. No começo, não deixavam entrar na base, que, afinal, é militar, mas, em algum momento, o Lacerda permitiu criarem uma área isolada com vista para as plataformas de lançamento.

A Estrela, empresa tradicional de brinquedos, lançou uma linha de foguetes de pelúcia que vendia como água.

Os livros de ficção científica triplicaram em tiragem nos últimos 3 anos, sem contar a quantidade de revistas sobre o tema que pipocavam nas bancas.

Todo semestre, o ITA recebia mais candidatos que nos anteriores. Muitos jovens sonhavam em fazer foguetes. Parecia até o passo natural: se Santos Dumont era o pai da aviação, o Brasil tinha que ser o pioneiro do espaço.

Claro que a paixão nacional ainda era o futebol e a Copa do Mundo de 54 estava prestes a começar. Mas com a derrota do Brasil para a Hungria nas quartas de final por 4 a 2, parecia que o espaço podia trazer mais alegrias que o futebol.

Então, no dia 2 de agosto de 54, o cruzador Tamandaré estava a postos no meio do Atlântico, a 4000km de Alcântara, pronto para captar o sinal do Arapurare 2 Formidável.

E põe formidável nisso. O foguete subiu para 1066km de altura e, na descida, ultrapassou em muito o cruzador brasileiro e quase chegou na África. Ainda assim, ele se desintegrou na atmosfera dentro do alcance das antenas do Tamandaré, que registrou uma distância de 4800km, superando até mesmo as expectativas do Jayme. Até a derrota no futebol ficou esquecida diante do voo do Formidável. Parecia até que Deus era brasileiro, e ele viajava de foguete.

Três dias depois, porém, iria ocorrer algo no Brasil que ofuscaria completamente aquele lançamento.

Capítulo 4 – Carlos Lacerda

O sol mal havia raiado na manhã de 5 de agosto de 54 quando o som de disparos ecoou pela rua Tonelero, no Rio de Janeiro. A cidade, que ainda dormia, não imaginava que o atentado contra o jornalista Carlos Lacerda tinha acabado de semear o caos.

Conhecido por sua retórica afiada e por não medir palavras, Carlos Lacerda havia se tornado um dos maiores antagonistas do presidente Getúlio Vargas. Sua coluna no jornal “Tribuna da Imprensa” era uma alfinetada constante contra o governo, e suas palavras encontravam eco em muitos lares brasileiros.

Naquela fatídica madrugada, Lacerda voltava pra casa quando foi surpreendido por tiros em sua direção. A tentativa de assassinato, no entanto, não alcançou seu alvo principal, mas acabou tirando a vida do major Rubens Vaz, um oficial da Força Aérea Brasileira que fazia sua segurança.

O ataque desencadeou uma série de eventos que sacudiram o país. A FAB, em luto e furiosa, exigia respostas e justiça. O episódio reverberou nos corredores da AEB, e o clima de tensão era palpável. Carlos Lacerda, mesmo ferido, não se calou e apontou diretamente para Vargas como o responsável pelo atentado. A acusação inflamava ainda mais os ânimos, e o país parecia à beira de um abismo.

Neste cenário turbulento, o major Henrique Lacerda, parente distante de Carlos, mas com um sobrenome que agora carregava o peso da controvérsia, tentava manter o foco no programa espacial e evitar uma crise política, ou, ainda pior, que as próprias forças armadas entrassem em conflito.

O que estamos construindo é maior do que qualquer disputa política.” dizia ele para o alto comando da FAB.

Mas as palavras do major-brigadeiro pareciam ecoar em um vazio. O atentado na rua Tonelero tinha aberto uma ferida profunda na nação, e a desconfiança se instalara em cada esquina, em cada conversa.

Os dias que se seguiram foram de incerteza e tensão. A pressão sobre Vargas aumentava, e a FAB, ferida em sua honra, não dava sinais de que aceitaria menos do que a verdade.

Então, no dia 24 de agosto, a notícia abalou o Brasil: Getúlio Vargas, o presidente da República, havia tirado a própria vida. Seu suicídio, acompoanhado de uma carta que se tornaria histórica, era um último ato de resistência, uma tentativa de sair do tabuleiro político sem dar a vitória a seus adversários.

O país parou, e o programa espacial, que tanto lutava para se manter à margem da política, viu-se novamente envolto em um manto de incerteza.

Epílogo

Você ouviu o terceiro episódio de “O Brasil vai pro espaço”, produzido pelo Scicast.

Os eventos narrados aqui, embora fictícios, utilizam como base fatos e pessoas reais da história do Brasil e do mundo. Em especial, neste episódio:

A Agência Espacial Brasileira é um órgão bem mais recente na história do brasil, sendo fundada em 1994 quando o programa espacial ganhou um caráter civil. Antes dela, existia uma porção de órgãos e departamentos com uma hierarquia toda confusa e burocrática. Eu queria colocar a AEB lá no começo, para simplificar a narrativa e ter um nome forte de referência, assim como a NASA é para os americanos. E eu acho que consegui uma boa desculpa para justificar a criação da AEB já em 51.

A primeira foto do espaço foi tirada em 1946 por um foguete V-2 modificado lançado pelos Estados Unidos. Eu não achei registro da primeira foto do espaço por um foguete brasileiro, mas acredito que tenha sido no projeto sonda, duas ou três décadas depois.

Nas minhas pesquisas sobre a década de 50 encontrei um anúncio da Estrela de dezembro de 53 com um urso gigante sobre o planeta Terra com uma plaquinha dizendo “Bichos de Pelúcia. São maravilhosos”. Seria muito plausível que o urso desse anúncio virasse um foguete no nosso Brasil aficcionado pelo espaço.

Anúncio original da estrela de 03/12/1953.

Sobre se Santos Dumont é o inventor do avião, eu acho que hoje temos evidências que apontam que não, mas isso é completamente irrelevante para a nossa história pois, naquela época (e ainda hoje), o brasileiro tinha plena convicção de que ele era. E só para deixar claro, eu sou muito fã de Santos Dumont e acho que ele foi um gênio muito brabo, um dos grandes da história.

Esse trecho final do episódio, sobre o atentado à vida de Carlos Lacerda na rua Tonelero até a morte de Getúlio, é completamente verdadeiro, incluindo a morte do major Rubens Vaz e a crise com a FAB. São eventos marcantes na política brasileira que eu não poderia ignorar na nossa narrativa alternativa.

Aproveito esse espaço para responder uma pergunta que tenho recebido muito, se todos esses dados técnicos que eu trago nos episódios (tipo de combustível, pressão da câmara de combustão, a rotação das turbo-bombas, etc) se tudo isso é verdade mesmo ou um floreio para o episódio. Gente, é tudo verdade mesmo. Acho que essa é a graça dessa série, poder contar uma história emocionante, com personagens, reviravoltas e tudo mais, e ao mesmo tempo ter um nível técnico extremamente profundo, passar um monte de conhecimento real sobre foguetes e sobre o espaço. Talvez essa seja a vantagem de ser um físico e roteirista.

O texto, narração e direção deste episódio foram feitos por mim, o Pena.

Vozes:

Cassani por Sergio Sacani

Jayme por Lennon Biancato Ruhnke

Zé por Fencas

Lacerda por Marcelo Guaxinim

Richard por Pena

Jamile por Juliana Vilela (Jujuba)

Engenheiro extra por Felipe Reis

Consultoria histórica por Willian Spengler, Cesar Agenor F. da Silva e Fencas.

Consultoria técnica por Lennon

Revisão por Silvana Perez

Edição e mixagem por Felipe Reis.

Vinheta por Vitor Moreira

E a distribuição é do portal Deviante.

O Brasil Vai Pro Espaço #03 Entre Abelhas e Marimbondos

27 de Outubro de 2023, 19:49
Por: Pena


Este é um conteúdo em formato podcast, mas, se preferir, pode acompanhá-lo com o texto e imagens a seguir.

Para ver todas as imagens deste episódio, entre nesta galeria.

Capítulo 1 –  Impossível

Dava dó de ver o Jayme correndo pelo corredor, parecia o urso do pica-pau. Não sabia se ia ou se voltava, se pedia ajuda para o Zé, se encarava o Richard ou se largava tudo e ia vender miçangas na praia.

Ele sabia que era impossível fazer aquele foguetão em um ano e meio. Só para desenvolver um motor capaz de erguer umas 20t (sim, ele calculou de cabeça o tamanho do foguete) já ia levar, com sorte, o prazo inteiro.

Parou no seu quarto, respirou fundo, refletiu por um minuto e tomou a decisão mais sensata naquela ocasião… mas como não encontrou nenhuma miçanga na sua gaveta, resolveu tomar a segunda decisão mais sensata naquela ocasião e se dirigiu para o escritório do Richard.

O mais curioso é que Richard, o engenheiro-chefe do programa, não ficou surpreso e, menos ainda, preocupado.

– Senhor, você entendeu claramente o que eu disse? Prefere que eu fale em inglês?

– Claro que entendi… um míssil com ogiva de 250kg para acertar 1000km. Quanto isso dá em milhas? 700?

– 621 milhas. Mas senhor… em um ano e meio… é impossível!

– Você que não está entendendo. Onde você quer chegar com esse programa? Você quer ficar 20 anos lançando foguete sonda? Eu não quero… eu quero chegar na Lua.

– Eu também quero senhor, acho que esse é o sonho de todo mundo daqui.

– Então aprenda a aproveitar as oportunidades, rapaz. Se a FAB tá querendo aumentar em 10, 20 vezes o nosso foguete, e vai dar dinheiro para isso: ótimo! Para chegar na Lua tem que aumentar em umas 2.000 vezes.

A cabeça de Jayme dava cambalhotas. Ele simplesmente não sabia como lidar com aquilo. Ele queria, com todas as forças, acreditar em Richard, mas sua mente analítica fazia contas e mais contas e a conta não fechava. Ao mesmo tempo, ele não tinha nenhuma habilidade social para reagir àquela situação e travou. Não conseguia dizer uma palavra. Sua sorte é que Richard pegou sua agenda de contatos e saiu da sala, aliviando um pouco aquela situação insustentável.

Uma semana depois Richard faz uma ligação para Edmond Brun, o francês que era o chefe do Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento, o IPD.

Não sei se vocês lembram, mas Edmond foi o professor que incentivou os alunos a fazerem o foguete de 1949, e acabou sendo contratado por    Richard para liderar a equipe de pesquisa. Havia hoje 50 professores / pesquisadores dentro do programa espacial, o que consumia 70% da verba disponível. Na visão de Richard, a pesquisa era a pedra fundamental da engenharia de foguetes.

– Eu sei, eu sei… é impossível, já ouvi antes. Mas veja, consegui verba para contratar mais 20 pesquisadores.

– Sim… continua impossível, calma. Eu tenho uma carta na manga. Dois desses pesquisadores são amigos meus lá do MIT que querem vir para cá. E eles já trabalharam com o motor XLR-41, que era a cópia do motor dos foguetes V-2 dos nazistas. Esse motor é perfeito para o nosso projeto.

– Não, claro que não, não dá para trazer um motor americano na mala. Só que eles podem trazer o projeto inteiro, todos os desenhos, peça por peça. E nossos brasileiros são bons de, qual o nome que eles usam, “gambiarra”. O Zé é incrível, consegue construir qualquer coisa com peças improvisadas. Pode deixar que o  motor tá com a gente. Vocês precisam focar no resto: Sistema de navegação, sensores, atuadores, giroscópios e, muito importante, novos materials… materials… materiais… oh shit, such a fuck word… você entendeu… precisamos de um tanque de alumínio. Aço é pesado.

– Não, não dá para usar esse alumínio do Brasil, tem que desenvolver uma liga que aguenta mais temperatura. Você consegue fazer tudo isso em um ano e meio?

Capítulo 2 – As abelhas

Nos meses seguintes, enquanto prédios, estruturas, ruas e pista de pouso vão sendo construídos em Alcântara, começa a ser erguida uma segunda plataforma de lançamento para lançar o novo foguete.

Mas na plataforma antiga as coisas seguem a todo vapor. O programa Arapuá, do foguete abelhinha de 1 tonelada, ainda tem muito o que render e com a técnica e ferramentas já desenvolvidas, agora a produção vai muito mais rápido.

4 meses depois, o Arapuá 2 está pronto para ser lançado. Ele é quase igual à Garbosa, com a diferença que o cone superior se separa do resto do foguete lá no alto e abre um paraquedas para uma descida suave. Por isso mesmo, recebeu o nome de Arapuá 2 Suave.

Arapuá 2 Suave, na plataforma.

O lançamento é perfeito, chegando a 156 km de altura, e o sistema de paraquedas funciona como esperado. Com a cápsula recuperada, os cientistas conseguem analisar os desgastes do material na decolagem e reentrada, além de avaliar os sistemas que foram expostos ao vácuo e à radiação.

Três meses depois, em dezembro de 51, a terceira abelha está pronta pro voo. Será o primeiro foguete meteorológico brasileiro, carregando sensores de temperatura e pressão, além de uma série de compostos químicos que serão expostos na atmosfera para testar modelos climáticos. Na correria, porém, o Jayme acabou esquecendo de registrar os dados da missão com antecedência. Tem toda uma burocracia enorme pra fazer e lá estava ele junto com o Zé, correndo desesperados para o “Escritório de Normativas e Registros Orbitais, Sistemas e Controles”, ou na sua forma reduzida “ENROSCO”.

– Jamile, Jamile, tá aqui… o documento, tá… tudo certo.

– Boa tarde Jayme, por 3 minutos você não me pegava aqui. Deixa eu ver… perfil de voo, área de isolamento, instrumentos de operação. Tá faltando aqui ó…

– O quê??? Não é possível, o que é isso?

– Nome da missão… o nome do foguete.

– Ai caramba, sei lá, ajuda Zé…

– 2 minutos.

– Ahh põe qualquer coisa.

– Não, não pode ser qualquer coisa. Nomes são importantes… o primeiro era “Garbosa”, depois foi o “Suave” (porque tinha o pára quedas)… esse aqui é um foguete meteorológico… ai caramba. Ajuda Zé!

– To pensando.

– Éeeee… que tal Medidor Atmosférico? Não, que nome horrível.

– 1 minuto.

– Poxa Jamile, não rola de segurar um pouquinho?

– Ãh ãh, meu ônibus passa às 18:15 em ponto… e eu que não vou perder o forró de hoje.

– Ahhh, Atmosensor, não… Meteor… ai porraa… ajuda Zéeee.

– 10 segundos, tô fechando.

– Zéeee!!!

– Jamile… escreve aí: “Farofa”.

– FAROFA???!

– É o nome da minha gata.

No dia 17 de dezembro, a Farofa voou de maneira impecável. Com suas medições, o Brasil conseguiu criar um perfil de temperatura e densidade atmosférico muito mais amplo do que havia antes. Após dois dias, o Instituto Nacional de Meteorologia fecha um acordo com a FAB para financiar mais dois lançamentos. Começaram a chegar os frutos do programa espacial, finalmente. 

Mas antes, já estava sendo construída a próxima abelha, que seria fundamental para o sonho ambicioso de chegar na Lua. O Arapuá 3 Ratazana levaria a bordo dois camundongos, numa cápsula incrivelmente tecnológica criada pelo Zé usando peças de carburador de carro e borracha de pneu de bicicleta.

– Perfeito Zé, parece bom, esses furos vão funcionar… vou buscar os ratinhos.

No dia 15 de maio 52, quase um ano depois do lançamento histórico, estava na plataforma a quarta versão do Arapuá, o Ratazana. Esta já tinha uma melhoria importante em relação à anterior: seus tanques eram de um liga de alumínio com cobre que a equipe de pesquisa tinha desenvolvido. Leve e resistente, o novo material reduziu em 20% o peso da estrutura do foguete. Às 16:49, 600 mil radinhos por todo Brasil sintonizavam nas repetidoras da Rádio Difusora do Maranhão. Estava começando a virar um hábito nos escritórios as pessoas pausarem o trabalho durante os 5 ou 10 minutos que durava o lançamento.

E embalada pelo auspicioso “Vai Filhão”, a abelha partiu de maneira impecável, chegando a 128 km de altura.

A gaiola maluca do Zé funcionou muito bem, abrindo os orifícios por cerca de 30s e expondo os ratinhos ao vácuo e à radiação do espaço.

Na descida, o paraquedas se abriu e a cápsula foi recuperada com sucesso. Os dois ratinhos estavam vivos, inclusive.

Se por um lado as coisas seguiam às mil maravilhas, com 4 lançamentos perfeitos na sequência (5 se contar o foguete de 49), por outro, o prazo do foguetão se apertava e ainda restava muita coisa a ser feita.

Capítulo 3 – O marimbondo

Com a nova verba do Ministério da Aeronáutica, foi possível dobrar o núcleo de pesquisa do IPD. Em dezembro de 51 somavam-se 100 professores, pesquisadores, técnicos e estagiários, todos comprometidos quase que em tempo integral ao programa espacial. E quando eu digo quase, é porque os professores paravam as pesquisas apenas para dar aula, o que também não deixa de ser uma transferência de conhecimento que reverteria, no futuro, para o próprio programa.

Sobre o novo foguete, o comandante Lacerda tinha pedido um abelhão, e quando contaram pro Zé:

– Abelhão? hum… abelha grande para mim é vespa ou marimbondo.

Tecnicamente, vespa e marimbondo são exatamente o mesmo bicho e não, não são um tipo de abelha grande, mas a gente perdoa o Zé. Ele gosta bastante de bicho, mas não é biólogo.

Seja como for, o termo pegou e nascia assim o projeto Marimbondo, quer dizer, Laurare, que é marimbondo em Karajá, seguindo a tradição de usar nomes indígenas.

Um foguete de 19 t, 15 m de altura e com apenas 1 estágio, uma cópia aumentada dos mísseis V-2 da Segunda Guerra. Naquele prazo de um ano e meio, não tinha margem para reinventar a roda, por isso seguiram um conceito já testado e aprovado. Basicamente, era um cilindro comprido de 1m e 60 de diâmetro terminando numa ponta em forma de cone no lado de cima, e em 4 aletas grandes, com 1,30m de largura cada uma, na parte de baixo.

Toda fuselagem seria construída na nova liga de alumínio e cobre desenvolvida pelo IPD. E eu digo seria, porque, em maio de 52, o foguete ainda estava no papel.

É verdade que durante esse um ano muita coisa avançou. Além da nova liga de alumínio, o grupo de pesquisas desenvolveu sensores e um sistema de controle hidráulico para dar ao foguete algum controle durante o voo. Também foi criado um computador mecânico que poderia ser programado para embicar o foguete numa direção e inclinação desejada.

Já a equipe de engenharia focou 100% no motor. Richard e seus colegas do MIT desenharam e adaptaram cada válvula, tubo, mangueira, parafuso e chapa a partir do motor americano XLR-41, que já era uma cópia do usado no míssil V-2. Esse era um motor de combustível líquido que usava uma bomba hidráulica muito poderosa para gerar a pressão necessária. O primeiro protótipo ficou pronto perto do Natal. Jayme, Zé e os demais alunos passaram as férias inteiras construindo e explodindo motores, mas a cada nova explosão a coisa ia melhorando. Ou o motor durava mais, ou a combustão era mais eficiente, ou a pressão ficava mais estável.

Em janeiro, Richard contratou mais 30 engenheiros, entre alunos do ITA, engenheiros mecânicos e engenheiros hidráulicos. Ao misturar todos estes ingredientes, ele estava formando, na prática, engenheiros de motor de foguete.

Em maio eles já colecionavam uma dezena de motores rachados ou derretidos, mas não dava para esperar mais, tinham que  começar a construir o foguete.

Richard negociou mais verba com Lacerda e contratou outros 20 engenheiros. A equipe se dividiu, metade continuaria a desenvolver o motor, sob a supervisão de Jayme e Zé, e metade, sob a liderança de Richard, começaria a fazer os tanques, as aletas, o sistema hidráulico, o sistema elétrico, ou seja, construir o foguete.

Era início de dezembro e havia um foguete imponente na plataforma. Mas faltava o principal, o motor. O carnavalesco da Unidos dos Telégrafos já estava fazendo a pintura, que prometia ser “O maior espetáculo já visto    no carnaval” (alguém tinha que avisar a ele que o foguete não era um carro alegórico). Enquanto isso, todos os 60 engenheiros se revezavam dia e noite tentando aperfeiçoar os protótipos do motor.

Platão disse que “a necessidade é a mãe da invenção”. Mas, no Brasil, a “gambiarra era o pai”. E o Zé, esse era o pai da gambiarra. Se tinha alguém que poderia fazer aquela turbo-bomba girar 4000 rotações por minuto sem estourar, usando ferramentas improvisadas e peças de um Chevrolet, era o Zé.

– Jayme, abre a válvula do oxigênio líquido… devagar.

– Abrindo…

– Fecha um pouco

– 5 Bar de pressão, parece estável.

– Tá não chefe, tô ouvindo um chiado… me passa a chave Jayme?

– Aqui.

– Vamo fazer um acionamento sequencial. Tá pronto Zé?

– Quaaasse, só mais um pouco…  tá melhor.

– Zé, tá saindo álcool pela vedação da bomba.

– Tá tranquilo, quando a rotação aumentar ele para. Pronto…

Aquela bomba era o coração do motor. Tinha que empurrar 71kg de álcool e 103kg de oxigênio líquido por segundo, para que a combustão gerasse 35 toneladas de impulso.

– Vou disparar o circuito, atenção… go!

– Jayme, acelera o peróxido.

Mas o que fazia aquela bomba girar? Eletricidade? Não, motores elétricos precisam de baterias muito pesadas, ainda mais naquela época. O segredo estava no peróxido de hidrogênio, ou mais conhecido como água oxigenada, que nada mais é do que água, H2O, com um oxigênio a mais. E basta colocar uma concentração enorme dessa água estranha passando por um catalisador para criar uma quantidade insana de vapor. É justamente esse vapor em alta velocidade que move a turbina e faz a bomba girar.

– 5 bar, 7, 8, 10, 11, hold, hold, segura.

– Iniciando cronômetro… tá estável porra… vai dar.

– Calma quatro-olho, tem um caminho longo até 17.

– Nunca vi tão estável assim em 11.

– Sem vazamentos, vedações perfeitas… 

O que eles estão medindo é a pressão dentro da câmara de combustão. Quanto maior a pressão, mais energia dá para extrair da queima do combustível. A meta é chegar em 17 bar, ou seja, uma pressão 17 vezes maior que da nossa atmosfera.

– Atenção ao relógio… 3, 2, 1… deu.

– Leve vibração, parece bom. Vamos prosseguir… atenção… go.

– Vai vai.

– 13, 14, 15 bar, hold, hold.

– Ahh porra, falta tão pouco.

– Ah caralho, merda de flange.

– Não Zé, cuidado, que você tá fazendo?

– Zé, get out, sai daí.

– Calcula aí, nerdão… 3800 RPM em Hertz.

– Éee, 63… vírgula 333… Zéee…

– Relaxa… só tem que sair da frequência de ressonância.

– Tá dando certo.

– É isso, é isso, abre tudo Jayme…

– Peróxido no máximo.

– 16…. 16,5…

– Mais um pouco… vai porra, vai porra.

– Me passa aquela porca… nãoo… a maior… maldita válvula que não para de vibrar.

– Tá aqui.

– Tá acabando o álcool, tem que abortar…

– Segura chefinho… me dá 5s.

– Se entrar bolha explode o motor.

– Mais um tiquinho…

– 17… caralho.

– Tá liso, porraaaa! Não acredito. Zé, seu safado!

A base de Alcântara, nessa época, parecia uma gincana de escoteiros.

Pra começar tinha um monte de barracas improvisadas, já que os edifícios e instalações para abrigar todo aquele monte de gente ainda estava sendo construído, bem como o galpão de integração, o centro de controle e a estação de rastreio.

Fora isso, havia um monte de gente correndo de lá pra cá o tempo todo, trazendo uma engrenagem que faltou, uma mangueira sobressalente, uma caixa de ferramentas ou uma borracha de vedação. Um grupo grande vinha trazendo o motor, de 900kg, do barracão até a plataforma. Era uma corrida contra o tempo. Faltavam 10 dias para o prazo final e eles precisavam instalar o motor, testar todos os sistemas e preparar tudo para o lançamento.

Em algum momento, o comandante Lacerda começou até a acreditar que seria possível lançar um foguete ainda naquele ano e resolveu ligar para o alto comando:

– Brigadeiro Nero Moura? É o Lacerda falando…

– É sobre isso mesmo que quero falar, parece que o marimbondo vai voar.

– Assim, pelo menos tem um foguete bonitão na plataforma. Tem motor? Não, ainda não, mas já dá para tirar foto.

– Meu ponto é, caso o foguete suba e, na hipótese dele realmente chegar a 1000 km de distância, a gente não tem como rastrear. A antena daqui não pega mais do que 500, 600 km.

– Aham…

– Mas já pensei numa solução. Se a gente lançar para o Leste, 1000 km vai dar no mar, perto do Rio Grande do Norte. Tem uma área lá que é da União e não tá sendo usada para nada, a gente podia colocar umas antenas lá. E o mais legal, o lugar se chama Barreira do Inferno, olha só que nome imponente.

– Tá meio apertado, eu sei, mas acho que se a Força Aérea liberar o C-47 a gente consegue levar todo o equipamento pra lá e deixar operacional até a data do voo. De repente a gente até monta uma base de rastreio permanente para os próximos lançamentos.

– Sim, sim, eu sei, primeiro o foguete tem que funcionar. Ele vai funcionar, confia.


– Não, comandante, não garanto nada… eu não confiaria se fosse você.

– Mas você prometeu.

– Prometi que o foguete estaria pronto até o natal, e ele está. Que ele vai funcionar… ahh, é bem diferente.

– Escuta aqui, seu ensaboado. Eu tô colocando todas as minhas fichas em você, Richard, você não faz ideia como esse programa tá incomodando muita gente da FAB. Agora que os brasileiros tão ouvindo os lançamentos, tem muito brigadeiro com ciúmes. Eu ia até recomendar dar um banho de sal grosso no marimbondo, o que deve ter de olho gordo.

– Sal grosso? O que é olho gordo?

– Nada, esquece… só garante que esse foguete vai funcionar, tá bom?

– Não, não garanto nada…

No dia 17 de dezembro, a tensão era insustentável. Lacerda fumava charuto como se fosse cigarro. Edmond tava com o rosto enfiado nas mãos enquanto Silvia e Vanda, duas cientistas do grupo de pesquisa, se abraçavam para não cair.

Zé enrolava tanto seu bigode que já tava parecendo o Dali.

Até mesmo a Jamile, que nem ligava para aquilo tudo, segurava firme o crucifixo no pescoço.

Jayme, por sua vez, estava repassando pela milésima vez o procedimento de lançamento, pra garantir que, na milésima primeira, não apareceria alguma coisa errada.

Somente Richard parecia tranquilo… ele segurava um sorriso simpático, com as mãos nos bolsos do jaleco, enquanto observava aquele foguetão na plataforma.

O Laurare estava resplandecente naquele sol forte de dezembro. Seu corpo branco era delineado por duas faixas verticais azuis que se bifurcavam perto da base formando uma saia dourada, de onde se projetavam 4 aletas azuis com bordas também douradas. Na parte de cima, um anel azul marcava o início do cone, formado por dois triângulos brancos e dois azuis, nos quais reluzia imponente a águia amarela da FAB. A parte mais alta era uma ogiva dourada com o número 1 estampado, para não deixar dúvidas que se tratava do primeiro marimbondo.

E como não poderia faltar, no corpo do foguete, bem grande, escrito na vertical estava o “Vai Filhão” com a bandeira do Brasil separando o Vai do Filhão.

Difícil saber se aquele seria o maior espetáculo já visto no carnaval, mas, com seus 15m de altura adornados em tinta metalizada, o “Laurare 1 Majestoso” era, sem dúvida, o maior espetáculo que Alcântara já vira.

– 5, 4, 3, 2, 1… vaaaaaai filhão… partiu o Majestoso, rasgando o céu, que momento incrível!

– Funcionou, FUNCIONOU Zé!!!! Porraaaa!

– AEEEEE Caralho… Jayme, seu nerd gostoso…

– Deu certo? Tá voando?

– Abre o olho comandante, já tá lá longe.

– Que voo lindo. O Majestoso tá fazendo um arco para o leste, voando por cima da costa brasileira. E atenção, chegou no espaço. Ultrapassou os 100km e continua firme.

– Tá tudo certo Jayme? Os números batem?

– Por enquanto sim… tudo nominal. O apogeu esperado é 270km.

– Galera, eu tô transmitindo direto da sala de telemetria, os engenheiros estão todos aqui, vibrando muito, é contagiante. 

– Mãe, te amo!

– Olha só, o engenheiro José Alves mandando até beijo para mãe… vale tudo, é muita emoção… atenção… o foguete tá chegando na parte mais alta da trajetória… olha só… 269, 270, 271… 2… 273km é um recorde brasileiro!

– Lembrando que esse é um voo suborbital, então ele volta pra Terra. Agora vem o momento crítico, a reentrada na atmosfera.

O Majestoso desfilava nos céus, acompanhado por mais de 1 milhão de radinhos, cada um falando para 3, 4, 5 pessoas.

– Atenção galera, agora o Majestoso tá muito longe pra antena aqui de Alcântara pegar, mas o sinal tá sendo retransmitido pela estação Barreira do Inferno… e continua tudo bem. A meta é 1000 km de distância e a gente tá com 930. Falta pouco, vai chegar.

– Tá perfeito Zé, vai cair certinho nos 1000, nem acredito, a gente vai acertar no alvo!

– E lá vai, 950 km, mais um pouco… iiii… perdemos o sinal galera.

– O que aconteceu, o que aconteceu?

– Não sei senhor, a telemetria caiu.

– Caiu não, o sinal com a Barreira do Inferno tá firme. Tenente Salgado, você copia?

Copio sim, Alcântara, temos confirmação… o foguete explodiu!

Epílogo

Você ouviu o terceiro episódio de “O Brasil vai pro espaço”, produzido pelo Scicast.

Os eventos narrados aqui, embora fictícios, utilizam como base fatos e pessoas reais da história do Brasil e do mundo. Em especial, neste episódio:

O Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento, o IPD, era realmente uma unidade de pesquisa fundada na década de 50 e que viria a se tornar o Instituto de Aeronáutica e Espaço em 94. Nas minhas pesquisas, encontrei fontes dizendo que ele foi fundado junto com o ITA, em 1950, e outras afirmando que foi inaugurado em 54. Para esse contrafactual, assumi que ele foi construído em 50 e sua implementação foi adiantada para 51 para suprir as demandas do programa espacial.

O Instituto Nacional de Meteorologia é um órgão bastante antigo do Brasil, fundado em 1909 sob o nome de Diretoria de Meteorologia e Astronomia. Em 1951, seria plausível que fechasse uma parceria com a FAB para financiar foguetes de sondagem meteorológica.

O motor XLR-41 foi uma cópia americana do motor do foguete V-2 feita durante o projeto Navaho, em 1947. Foram feitas 3 cópias do XLR-41 mas nunca voaram, pois o programa acabou preferindo o XLR-43 que se baseou numa versão um pouco mais leve do motor do V-2. Não seria difícil pensar que um projeto de um motor descontinuado de 47 pudesse estar acessível para pesquisadores do MIT em 1950.

Quando eu estava escrevendo o roteiro, queria que o Zé usasse peças improvisadas de Fusca, mas descobri que o carro só começou a ser vendido por aqui em 1950 e só foi fabricado totalmente no Brasil em 1959. Optei por um Chevrolet, que já estava sendo importado há décadas.

O Centro de Lançamento da Barreira do Inferno foi a primeira base de lançamento construída no Brasil, em 1965, próxima de Natal, no Rio Grande do Norte. Esse nome curioso vem do jeito que os pescadores locais chamam aquela região de dunas que, no pôr do sol, ficam vermelhas como fogo. No nosso contrafactual, Alcântara foi construída antes, mas eu queria alguma desculpa para poder justificar a construção da Barreira do Inferno. Como ela é hoje usada para monitorar foguetes do mundo todo quando passam próximos do Brasil, achei que uma estação de monitoramento seria mais do que fundamental para rastrear nossos próprios lançamentos.

O texto, narração e direção deste episódio foram feitos por mim, o Pena.

Vozes:
Cassani: Sergio Sacani
Jayme: Lennon Biancato Ruhnke
Zé: Fencas
Lacerda: Marcelo Guaxinim
Richard: Pena
Jamile: Jujuba

Consultoria histórica: Willian Spengler, Cesar Agenor F. da Silva e Fencas

Consultoria técnica: Lennon Biancato Ruhnke

Revisão: Silvana Perez

Edição e Sonorização: Felipe Reis.

Vinheta: Vitor Moreira

E a distribuição é do portal Deviante.

O Brasil Vai Pro Espaço #02 A Fronteira do Espaço

20 de Outubro de 2023, 16:11
Por: Pena

Este é um conteúdo em formato podcast, mas, se preferir, pode acompanhá-lo com o texto e imagens a seguir.
Para ver todas as imagens deste episódio, entre nesta galeria.

Capítulo 1 – A Fronteira do Espaço

5, 4, 3, 2, 1…. Vaaaai Filhãooooo!

O foguete Arapuá número 1, apelidado de Garbosa, acende seu rabo fumegante e dispara para cima, queimando o combustível sólido compulsivamente. Em apenas 1 segundo todos os 65kg de nitroglicerina misturada com nitrocelulose é convertido em gases que escapam tão violentamente que aceleram o foguete até 470km/h. Se você se surpreende com um carro que faz de 0 a 100 em 2 segundos, esse foguetinho faz de 0 a 470 em 1 segundo.

Mas agora vem uma fase crítica. O primeiro estágio já está completamente vazio e precisa ser ejetado. Isso é feito com um desacoplador – uma peça circular que conecta o foguete de cima com o de baixo por meio de parafusos explosivos. Após 1,05 segundos, se tudo der certo, uma carga explosiva estoura a cabeça dos parafusos e libera o peso morto para que o segundo estágio, que usa combustível líquido, assuma o resto da viagem.

Aqui preciso pausar para explicar uma coisa muito importante sobre foguetes: Qual a diferença de usar combustível sólido ou líquido?

Combustível sólido é normalmente um tipo de pó explosivo, como pólvora, que você pode comprimir dentro de um tubo e aquilo fica super estável, pronto para o uso meio que para sempre. Pensa num rojão. Você pode deixar ele guardado lá na despensa e, num dia qualquer, só acender o pavio e pronto. A vantagem é exatamente essa, poder preparar e armazenar com antecedência e não precisar de nenhum mecanismo complexo para operar. Conforme ele vai queimando, o fogo vai consumindo sozinho todo o estoque de combustível, transformando-o em gás, que é expelido para baixo e empurra o foguete para cima.

Combustível líquido é muito mais complicado. Você tem que misturar dois tipos de líquidos em uma câmara e acender uma faísca lá dentro. Um desses líquidos é o combustível em si, algo inflamável. No caso do nosso foguete é querosene. Mas para algo pegar fogo, precisa ter um oxidante, que pode ser oxigênio líquido, mas, no nosso caso, é o tal do ácido nítrico fumegante. A sua fórmula química é 4HNO3 + N2O4 o que significa que tem 16 átomos de oxigênio concentrados em cada unidade desse pó. É justamente por isso que ele é tão corrosivo, pois esse oxigênio todo adora oxidar qualquer substância, até mesmo aço inoxidável em algumas condições, por mais que isso pareça contraditório.

Mas voltando aqui no nosso foguetinho. Esses dois líquidos estão armazenados dentro da fuselagem da Garbosa, cada um em um tanque. Pra facilitar, vamos pensar que tem dois barris dentro do foguete, um com vinho e outro com água. Se eu quiser misturar os dois, basta abrir a torneirinha de cada barril dentro da mesma bacia, certo? No caso, a bacia seria a câmara de combustão, onde ocorre a faísca que acende o motor.

Só que não é tão simples. Abrir as torneiras até que faz os líquidos saírem, mas a gente precisa que eles saiam em alta pressão para que se transformem em gotículas e se misturem melhor um com o outro. Pensa numa mangueira de jardim quando você espreme a saída com o dedo. O jato de água se espalha como uma chuva. Quanto mais pressão na mangueira, mais a água se espalha.

E pra garantir essa pressão toda tem dois jeitos. Ou você coloca bombas muito poderosas, que são extremamente complicadas de fazer e precisam girar numa velocidade insana. Ou você pressuriza o próprio líquido dentro do barril, a uma pressão muito alta, para que, assim que abrir a torneira, ele já saia com velocidade. Essa solução é mais simples, mas tem seus problemas: o barril tem que ser muito mais grosso e pesado para aguentar a pressão toda sem rachar, e isso adiciona peso extra no foguete. Além disso,  líquidos não são comprimíveis, então você precisa adicionar algum gás dentro do tanque e pressurizar esse gás, o que adiciona alguma complexidade. Ainda assim, essa opção é muito mais fácil do que construir as bombas super potentes, portanto a Garbosa usa tanques pressurizados com nitrogênio.

Depois de ligar as duas torneiras e começar a sair tanto querosene quanto ácido nítrico, você ainda precisa gerar a ignição, que é feita usando um tipo de “palito de fósforo” gigante dentro do motor. Só que só tem um palito, então é uma única tentativa. Tudo ou nada. Se por acaso não tiver saindo a quantidade certa de cada líquido, o palito queima e não acende o motor.

Como esse motor está no segundo estágio, ele precisa ser acionado com o foguete já voando, depois que o primeiro motor terminou de queimar e foi ejetado. Agora imagina esses dois barris lá dentro do foguete em pleno voo, chacoalhando loucamente. O líquido lá dentro fica todo balangando, girando, igual quando você joga uma garrafa de água para o alto e a água fica dando cambalhotas lá dentro. E nessa hora, se você abrir a torneira do barril, pode ser saia líquido, mas pode ser que não, talvez só saiam bolhas de gás. Se sair líquido, parabéns, o motor acende. Mas se não… perdeu o foguete.

A solução que os brasileiros chegaram foi muito engenhosa:

Não tem como Zé, esse segundo estágio é muito instável.

O Jayme, tu tá marcando touca mermão? Faz mais de mês que to falando isso.

Eu sei Zé, mas a gente tem que dar um jeito.

Tava pensando aqui, e se a gente colocasse um gás explosivo no tanque. Em vez de Nitrogênio, podia ser hidrogênio. Aí mesmo que saia bolhas, vai pegar fogo.

Não sei Zé, daí corre o risco de ter uma explosão e acabar com o motor. Fora que hidrogênio é tão leve que escapa por qualquer vedação, vai ser um pé no saco.

Eu sei Jayme, mas aí lascou. Não tem o que fazer.

Assim que o foguete sai da plataforma, já começa a ter turbulência no tanque. A gente precisa reduzir essa turbulência de alguma forma.

Caraca Jayme, é isso. Puta que pariu…

Isso o que? Não falei nada de mais.

Falou sim… Repete o que você falou.

Que a gente precisa reduzir essa turbulência?

Não, antes…

Éeeee, assim que o foguete sai da plataforma começa a ter turbulência…

Isso aí. A solução é essa. Se começa a turbulência quando o foguete levanta voo, é só a gente acender o segundo motor com o foguete ainda no chão. A gente liga o primeiro e o segundo estágios juntos, sacou.

O Zé, meu chapa, não sei se você sabe, mas tem um motivo para chamar SEGUNDO estágio. É porque ele vem DEPOIS do primeiro, e não junto, tá bêbado essa hora já?

Presta atenção o quatro-olho…  quanto tempo dura a queima do primeiro estágio?

Um segundo. Um vírgula zero cinco segundos.

E quanto tempo leva para o motor do segundo estágio partir depois de aceso?

Éeee, meio segundo, talvez um pouco mais.

É só a gente acionar os dois juntos. No momento que o primeiro acabar, o segundo vai tá praticamente começando. Sacou nerdão?

hum…pior que faz sentido, mas aí tem um problema. Como que o motor de cima vai partir se ele vai tá preso no de baixo quando acender? Não tem como o gás escapar.

A não ser que a gente use um desacoplador com furos? Sabe, um cilindro cheio de buracos, tipo uma gaiola? Daí os gases conseguem escapar durante esse meio segundo.

Uau, agora ce foi o maioral…é capaz de funcionar.

Tem que funcionar, … (barulho de metal) esse cilindro aqui ó, acho que é perfeito para isso, vou começar a usinar. Amanhã a gente já tem um desacoplador pra testar, meu chapa.

Foram muitos testes nessa ideia maluca, para garantir que os dois estágios fossem acionados ao mesmo tempo, ainda em terra. O    desacoplador final tinha um vão de uns 40 centímetros que permitia aos gases escaparem durante meio segundo e, sim, deu certo.

Agora que a gente sabe tudo sobre como funciona o Arapuá, vamos voltar pro lançamento.

… a Garbosa acende seu rabo fumegante e dispara para cima, queimando o combustível sólido compulsivamente. Ao mesmo tempo, o segundo estágio, com combustível líquido, abre as torneiras e seu motor também é acionado. Os gases do segundo estágio escapam pelo desacoplador. Após 1 segundo, todo o combustível sólido foi queimado e o desacoplador é acionado com sucesso, explodindo a cabeça dos parafusos que o prendem no foguete de cima. O foguete de cima se livra da carcaça vazia do estágio de baixo e seu motor continua a funcionar. Até agora sucesso! Passamos da primeira fase crítica.

Durante os próximos 60 segundos o foguete vai continuar a queimar querosene misturado com ácido nítrico acelerando sem parar. A resistência do ar vai aumentando mais e mais na ponta do foguete e, quando ele atinge os 15km, a pressão é enorme. Essa é a segunda fase crítica. A Garbosa treme, grita, reclama; seu cone frontal passa dos 200 graus e suas aletas envergam com a força do vento. E então… o ar vai ficando rarefeito e a pressão diminuindo. O foguete segue sem contratempos até alcançar 130km de altura. SUCESSO! O Brasil pode comemorar pois tem, oficialmente, um foguete que chegou no espaço.

Multidão:
– Discurso, discurso, discurso…

Parabéns, parabéns… eu não acredito, a gente fez isso, vocês fizeram isso. O Brasil chegou no espaço. 

Quem tá falando é o Richard Smith, aquele que foi roubado dos americanos pelo coronel Montenegro e colocado como Engenheiro Chefe do programa espacial brasileiro.

-Hoje de noite, vão comemorar, vão descansar. Amanhã não precisa vir, tirem folga. Mas depois de amanhã, precisa voltar, porque temos que começar a fazer o próximo foguete!

Todos vão pra casa aliviados, pois sabem que passaram na prova de fogo e que o programa espacial vai continuar. A narração do voo histórico na voz de Sergio Cassani e seu “Vai Filhão” é reproduzida nas rádios do país e chega a passar numa reportagem na recém inaugurada TV Tupi, a primeira emissora do país. 

Hoje, 21 de Maio, às 10:15 da manhã, o Brasil lançou com sucesso seu primeiro foguete ao espaço, Arapuá. O lançamento ocorreu na base de Alcântara, Maranhão.

Vamos ouvir agora o momento histórico, narrado por um dos integrantes do grupo:

– O sinal tá chegando bem galera, a telemetria tá marcando 80km, tá chegando, esse momento é histórico, 90km, falta pouco, o foguete segue firme, 100km… Chegamos no espaço! agora foi… inacreditável…

Até mesmo o Repórter Esso, o noticiário de rádio mais importante do país, reproduziu a voz de Cassani:

– O Brasil, seguindo os passos dos americanos, acaba de ultrapassar a barreira do espaço com um veículo autopropulsionado. Vamos ouvir a narração deste momento histórico, na voz de Sérgio Cassani:

– 3, 2, 1, vaaaaai filhão…

O brasileiro, que nem sabia o que era foguete, comemora como se fosse um gol. A narração empolga crianças e adultos. No dia seguinte, meninos e meninas brincam nas ruas com garrafas de refrigerantes fantasiadas de foguete, com o “vai filhão” escrito a tinta. Com a opinião pública a favor, o Ministério da Aeronáutica libera uma verba gorda para a construção de um verdadeiro Centro de Lançamento em Alcântara, não apenas aquele    barracão.

Capítulo 2 – O Acordo

Passada uma semana, o major-brigadeiro Henrique Lacerda, o comandante militar encarregado pelo programa espacial, marcou uma reunião com Richard Smith, o engenheiro-chefe.

Mas aqui vale dizer que Richard era um cara excêntrico. Pra começar era americano, que já deixava ele deslocado em matéria de cultura brasileira. E era cientista, desses mais avoados, que não ligava para protocolos, patentes, hierarquia, nada disso. Era quase uma brincadeira sem graça e inconcebivelmente improvável que alguém como ele estivesse trabalhando para uma instituição militar quadrada como a FAB, a Força Aérea Brasileira. Mas o destino é uma criança zombeteira que ri das situações inusitadas, e colocou Richard como a única pessoa no Brasil capaz de tocar um projeto desses. A FAB queria um programa de foguetes para ter um míssil de longo alcance. Mas Richard queria fazer foguetes porque era um desafio, e era divertido. Além, é claro, de toda ciência desenvolvida com a exploração espacial..

Mas não se enganem, pois o que era de excêntrico ele era de esperto. O ITA tinha acabado de ser fundado e precisava de professores, professores esses que tinham que vir de fora já que, não havia outros cursos de engenharia aeronáutica no Brasil. Richard, então, criou um programa para contratação desses professores, principalmente americanos, ingleses e franceses, que ganhariam uma bonificação se também entrassem para o time de pesquisa espacial. Da verba que dispunha, usou quase tudo para contratar 50 pesquisadores. Ele sabia que a pesquisa era o gargalo do foguete. Precisa inventar novos materiais, mais resistentes e leves, projetar e testar novos motores, sistemas de controle, sensores, etc, etc…

Mas pra construir e projetar o foguete em si, ele só precisava de alunos de engenharia. Reuniu os 10 melhores, 5 cariocas da ETE, que tinham feito o foguete de 49, e 5 paulistas do ITA. Os 10 escolhidos trabalhariam diretamente com ele, aprendendo do jeito mais eficiente que existe, na prática.

Essa equipe toda ficava em São José dos Campos, no campus do ITA e do IPD (Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento). Os professores davam aula e depois faziam pesquisa. Os alunos escolhidos assistiam às aulas e depois iam construir foguetes. De vez em quando, para lançar os protótipos, Richard e os alunos pegam um voo num Lockheed 12A da força aérea e iam para Alcântara.

Mas o destino também quis que dois desses alunos se tornassem muito queridos de Richard, eles eram os melhores dos melhores. José Roberto Alves, ou apenas Zé, de 24 anos, era engenheiro mecânico formado na Escola Técnica do Exército e foi a figura-chave na montagem dos foguetes de 49. Era um artista quando operava um torno mecânico, além de ser o mestre da gambiarra. O coração da equipe.

Por sua vez, Jayme Bossa, paulista, 23 anos, era o nerd dos nerds. Tinha um talento sem igual para fazer contas de cabeça e resolvia até integrais. Sua nota mais baixa durante toda a graduação foi um 9,3 em Resistência dos Materiais, e ele jura que foi porque o professor que não entendeu sua notação para o cubo de faces centradas. Jayme era o cérebro da equipe.

Richard tinha encontrado seus pupilos, seu braço direito e esquerdo. Esses garotos podiam projetar e construir um foguete junto com ele. Aliás, mais do que isso. Eles podiam ir nas reuniões no lugar dele. Lembra que eu disse que Richard era excêntrico né? E achava todo esse sistema militar uma bobagem? Então, com a desculpa de que não entendia direito português, mandava ou o Zé, ou o Jayme, falar com o Lacerda, dependendo do assunto da reunião. Hoje foi a vez do Jayme.

– Pois não senhor major senhor, mandou me chamar?

– Não, claro que não. Mandei vir aquele americano ensaboado. Mas se é você que apareceu, então vai tu mesmo.

– Sim, senhor.

– Olha garoto, o foguete que vocês lançaram realmente subiu bem alto, parabéns pelo feito.

– Obrigado, major, senhor, senhor.

– Mas me diz uma coisa… ele foi pra cima né? Uns 130km.

– 132km senhor.

– E pro lado, quão longe ele consegue ir?… dá pra chegar na Argentina por exemplo?

– Hum, acho difícil senhor. O alcance máximo é por volta de 2 vezes a altura máxima, ou 264km, sem considerar a curvatura da Terra e assumindo gravidade constante. Se quiser posso fazer as contas exatas… fazemos uma expansão por Taylor, a derivada a segunda de g é…

– Ei ei, calma, calma. Vamo arredondar para 300km. É, tá fraco. Mas e quanto de peso esse foguetinho consegue carregar… uns 100kg?

– Senhor, não senhor, major, senhor. Se adicionar 100kg de carga útil o alcance cai para, menos de 200km.

– Nossa, só isso? Tá, deixa eu pensar aqui. E em termos de precisão? Olhando aqui no mapa, se a gente lançar digamos de Foz do Iguaçu… até Assunção no Paraguay dá 300km. Se eu mirar assim, no prédio do governo, dá para acertar?

– Acertar? o que, o prédio?

– Não, garoto, acertar a sua tia na esquina…, claro que é o prédio.

– Não, senhor, major, senhor. Impossível. Esse foguete não tem controle, não tem como manobrar para acertar nada. Se ele cair em qualquer lugar dentro da cidade já seria uma sorte absurda.

– Ora, então esse foguete não serve pra nada.

– Serve sim, senhor. Para fazer sondagem meteorológica, descobrir as formações de chuva, correntes de vento, entender o campo magnético da Terra, a radiação do espaço, fazer experiências em gravidade zero, testar formas biológicas no vácuo, testar novas tecn

– Segura a onda aí. Deixa eu te falar uma coisa… é… Jayme seu nome né?

– Sim, senhor, Jayme, major, senhor.

– Então Jayme… esse programa espacial tá sendo financiado pela FORÇA AÉREA BRASILEIRA. De alguma maneira, esses milhões que a gente tá investindo, precisam virar algo ÚTIL para FORÇA AÉREA BRASILEIRA, estou falando de MÍSSEIS. Foguetes capazes de levar uma OGIVA de 250 Kg até um alvo há 1000km de distância e acertar um prédio específico e não destruir um hospital ou uma praça. Avisa o americano lá, que se ele quer continuar recebendo financiamento para poder lançar foguetinhos para… medir… campo magnetostáticférico da Terra, ele vai precisar me entregar um míssil.

– Sim, Major, senhor, senhor.

– Deixa eu ver, vocês levaram um ano e meio para fazer essa abelhinha. Então vamos colocar mais um ano e meio para entregar o abelhão teleguiado de 1000km, tá certo?

– Senhor, é impossível. Esse foguete seria muito maior do que o Arapuá, talvez 10 ou 20 vezes mais pesado. Não tem como projetar, desenvolver, testar e lançar algo assim em um ano e meio.

– Olha, muita gente dizia que era também impossível fazer o que vocês fizeram em um ano e meio.

– Sim, mas a gente já tínha o primeiro estágio desenvolvido e também tivemos muita sorte.

– Então melhor colocar a ferradura na porta e o pé de coelho no bolso, porque eu já tô brigando com muita gente lá de cima para manter toda essa fantasia acontecendo. É muita gente que acha que tamo rasgando dinheiro. Consegui negociar uma verba bem maior diretamente do Ministério da Aeronáutica, por conta do sucesso do foguetinho, mas eles querem algo concreto até fim de 52. E antes do natal hein, que fique claro. Ninguém vai querer passar as festas em Alcântara, pelo amor como tem mosquito lá no verão. Estamos entendidos?

– Não senhor, éee, sim senhor, quer dizer, sim não senhor major, senhor…

– Dezembro de 52. Fecha a porta ao sair.

– AAAAAAhhh…

Epílogo

Você ouviu o segundo episódio de “O Brasil vai pro espaço”, produzido pelo Scicast.

Os eventos narrados aqui, embora fictícios, utilizam como base fatos e pessoas reais da história do Brasil e do mundo. Em especial, neste episódio:

O personagem Jayme Bossa foi inspirado no engenheiro Jayme Boscov que se formou no ITA em 1959 e foi o grande líder do programa espacial brasileiro de 69 à 92. Além de conduzir com sucesso os projetos dos foguetes Sonda III e Sonda IV, é considerado o pai do VLS (o veículo lançador de satélite) que infelizmente entrou em declínio quando Boscov se afastou em 1992. Alguns consideram a sua saída em 92 como o marco do fim do programa espacial brasileiro, tamanha sua importância.
Jayme Boscov faleceu recentemente, em 2 de julho de 2020, aos 87 anos. Fica minha homenagem a ele por meio do nosso querido nerd Jayme Bossa.

A TV Tupi, a primeira emissora de TV do país, foi inaugurada em 18 de setembro de 1950 e poderia, portanto, ter noticiado a nossa conquista do espaço em 51. Mas nessa época quase não existiam aparelhos de TV no Brasil. O rádio, no entanto, era o grande veículo difusor com o “Repórter Esso” sendo o noticiário de maior relevância.

O programa era uma versão brasileira do “Your Esso Reporter”, o noticiário americano mantido pela companhia de petróleo Esso e que foi exportado para diversos países da américa latina, como Argentina, Chile, Colômbia e, claro, o Brasil.

Este foi o primeiro rádio jornal brasileiro que possuía uma agência de notícias por trás, não se limitava apenas a ler os recortes de jornal. E por ser uma agência de notícias internacional, a United Press International, permitia uma cobertura quase imediata de eventos do mundo todo, como a Segunda Guerra Mundial na década de 40.

Por outro lado, o Repórter Esso também se tornou um instrumento de propaganda americana durante a Guerra Fria, uma tentativa de exportar a visão do tio Sam para a américa latina e afastar as influências soviéticas para as bandas de cá.

O texto, narração e direção deste episódio foram feitos por mim, o Pena.

Vozes:
Cassani: Sergio Sacani
Jayme: Lennon Biancato Ruhnke
Zé: Fencas
Lacerda: Marcelo Guaxinim
Richard: Pena
Jornalista da TV Tupi: Silvana Perez
Repórter Esso: Willian Spengler
Vozes de fundo: Vitor Moreira e Letícia Carvalho

Consultoria histórica: Willian Spengler, Cesar Agenor F. da Silva e Fencas

Consultoria técnica: Lennon Biancato Ruhnke

Revisão: Silvana Perez

Edição e Sonorização: Felipe Reis.

Vinheta: Vitor Moreira

E a distribuição é do portal Deviante.

O Brasil Vai Pro Espaço #01 Vai Filhão

13 de Outubro de 2023, 01:47
Por: Pena



Este é um conteúdo em formato podcast, mas, se preferir, pode acompanhá-lo com o texto e imagens a seguir.

Agora, em 2023, faz 20 anos que ocorreu a tragédia no Centro de Lançamento de Alcântara que matou 21 técnicos e engenheiros, e colocou um fim no programa espacial brasileiro, pelo menos até agora. E além da tragédia em si e das vidas perdidas, o que me deixa muito triste disso tudo é saber que Alcântara é o melhor ponto geográfico do mundo para lançar foguetes e o Brasil poderia se tornar o maior porto mundial no acesso ao espaço.

E quando eu digo que Alcântara, no Maranhão, é o melhor ponto do mundo é principalmente por dois motivos:

Primeiro: A base está localizada quase na linha do equador, a apenas 250 km ao sul do umbigo do planeta. E embora a Terra leve sempre 24 horas para dar uma volta completa em seu próprio eixo, a velocidade da superfície não é a mesma em todos os pontos. Pensa num disco girando numa vitro  la. Se você colar um adesivo perto do centro do disco, ele vai girar bem mais devagar do que um adesivo colado na borda do disco. Ambos levam o mesmo tempo para dar uma volta completa, mas o adesivo de fora percorreu uma distância muito maior. Da mesma forma, a linha do equador é onde a Terra é mais gordinha, é como a borda mais externa do disco. Quanto mais próximo do Equador, maior é a velocidade de giro. Ao lançar um foguete, ele já   sai do chão com essa velocidade e não precisa acelerar tanto para entrar em órbita, o que economiza combustível ou permite que o foguete carregue mais peso.

Quanto mais próximo ao equador, maior a velocidade orbital que o foguete recebe. Alcântara está no primeiro lugar do mundo.

A segunda base mais próxima do equador fica na Guiana Francesa e está a 580 km ao norte da linha central, mais do que o dobro da distância de Alcântara.

Para comparação, a base americana está a mais de 3000 km ao norte e um foguete lançado do Brasil já sai com uma velocidade 13% maior da plataforma que um lançado dos EUA.

O segundo motivo é que Alcântara tem uma vasta saída para o oceano, cobrindo de norte a leste. Lançar foguetes é uma atividade perigosa, e, de vez em quando, eles podem explodir no ar e cair em algum lugar imprevisto. Para garantir a segurança da operação, os foguetes precisam ser lançados em direções despovoadas, como o oceano. Da base de Alcântara, como a saída para o mar é enorme, é possível lançar para todo tipo de órbita, da polar até a equatorial.

Quando olhamos a base americana, nenhuma dessas duas trajetórias é possível sem passar por regiões povoadas, pelo menos não sem ter que fazer manobras complicadas que acabam aumentando bastante a quantidade de combustível.

Não é possível lançar para órbitas polares ou equatoriais do KSC.

O Centro de Lançamento de Alcântara é, sem dúvida, o melhor localizado do mundo, e para explorar esse potencial, havia um programa espacial brasileiro todo centrado na criação do VLS, ou Veículo Lançador de Satélite, um foguete de 20m de altura que poderia colocar tanto satélites em órbita quanto o Brasil no mapa do seleto grupo de países que têm acesso ao espaço.

crédito: Força Aérea Brasileira

Mas o sonho virou pesadelo em 22 de agosto de 2003, três dias antes do voo inaugural do VLS. O foguete, pesando 50 toneladas, estava na plataforma, recebendo os últimos preparativos, quando um dos motores de combustível sólido entrou em ignição (barulho de foguete queimando) e iniciou um incêndio devastador.

crédito: Agência Brasil

 O fogo durou apenas 8 minutos, mas foi o suficiente para destruir completamente a torre de lançamento e matar 21 pessoas que estavam trabalhando ali. Um dia muito triste na história do Brasil.

Para quem quiser saber mais detalhes sobre esse acidente, o Scicast publicou um episódio para falar sobre isso, lançado agora há pouco.

Mas… esse podcast que você tá ouvindo não é para falar do acidente, pelo contrário: quero contar uma história alternativa de como teria sido um programa espacial brasileiro. Vou fazer uma simulação super realista de um programa espacial a partir da base de Alcântara, começando na década de 50, e quero ver se a gente consegue chegar até a Lua.

Vai ser uma aventura muito divertida, cheia de desafios e, no processo, vou poder explicar, em detalhes, como funcionam os lançamentos de foguete, as órbitas, as dificuldades técnicas, a ciência e tecnologia por trás, e criar nosso verdadeiro foguete brasileiro que vai quem sabe, finalmente, entrar em órbita. Eu sou o Pena, físico e entusiasta do espaço, e essa é a minha maneira singela de homenagear as vítimas da tragédia de Alcântara e servir de inspiração para, quem sabe, um novo programa espacial brasileiro no futuro. Lançar foguetes nunca mais será a mesma coisa depois desse podcast, vocês vão entender, confia.

Além de mim, existe uma equipe muito profissional e empolgada aqui do Deviante que topou transformar essa história em um audiodrama… então, sem mais delongas, vamos começar.


Foguete V-2 pronto para ser lançado.

Durante a Segunda Guerra Mundial o mundo viu os nazistas desenvolverem um novo tipo de arma, os foguetes V-2, de forma que, após o fim da guerra, houve um interesse grande em entender esse novo tipo de tecnologia. Em 1945, o tenente-coronel brasileiro Casimiro Montenegro Filho viaja para os EUA onde visita centros importantes de pesquisa e conhece o chefe de engenharia aeronáutica do MIT, Richard Harbert Smith. Houve uma afinidade imediata entre os dois, de forma que Montenegro resolve fazer uma proposta ousada, cujo aceite era impensado – o não eu já tenho, pensou ele. E assim, o Brasil consegue sua primeira grande vitória espacial, ao roubar Richard Harbert do MIT com o sonho de criar um instituto aeroespacial em solo brasileiro. O local escolhido foi São José dos Campos, em São Paulo, e, durante o restante da década de 40, as obras seguem firmes.

O Tenente-coronel Casimiro Montenegro (de chapéu) apresenta a maquete do ITA.

Paralelo a isso, um outro grupo brasileiro também resolve se envolver com foguetes, e dessa vez de uma maneira mais direta. A Escola Técnica do Exército (ETE), em 1949, recebe um professor francês, Edmond Brun, para lecionar a disciplina de “Autopropulsão a Jato”. Ao se deparar com um grupo animado de alunos, o professor os incentiva a fazer um foguete. Naquele ano mesmo é, então, lançado, com sucesso, um pequeno foguete de combustível sólido que marcaria esse novo ímpeto brasileiro na autopropulsão.

No ano seguinte, 1950, a ETE segue com a ideia de criar o primeiro foguete de combustível líquido do Brasil e, enquanto isso, em São José dos Campos, as obras finalmente terminam e é inaugurado o Instituto Tecnológico de Aeronáutica, o ITA. O sonho de Montenegro finalmente aconteceu, o MIT brasileiro era realidade.

É aqui que começa o nosso contrafactual. Todas as informações até aqui são verdadeiras. Mas agora, vamos imaginar o que poderia ter acontecido se, nesse momento inicial, tivesse existido já uma percepção da importância de uma base de lançamentos na região de Alcântara, próximo ao equador, e que um programa espacial tivesse sido aprovado no início da década de 1950.

Digamos que aqueles primeiros alunos da Escola Técnica do Exército, que estavam projetando um foguete de combustível líquido, tivessem sido recrutados para este programa, sediado no recém criado ITA, e que um barracão simples, com uma infraestrutura básica, tivesse sido construído em Alcântara, para lançar estes foguetes. Assim começa nossa história.


Capítulo 1 – Vai Filhão!

É 1951 e um grupo de engenheiros e estudantes do ITA se reúne ao redor da plataforma “Sonda A” na recém inaugurada Base de Alcântara. Um foguete comprido e fino está posicionado na plataforma com os dizeres “Vai Filhão” estampado na fuselagem. A contagem regressiva tem início: 10, 9, 8, 7… peraí. Mas antes, que raio de foguete é esse?

Foguete Arapuá 1 Garbosa na plataforma de lançamento.

Durante o ano de 1950, os recém contratados engenheiros e pesquisadores do ITA, liderados por Richard Harbert, o ex-chefe de Engenharia Aeronáutica do MIT (aquele que foi roubado dos americanos pelo coronel Montenegro, lembram?). Enfim, essa galera toda aí desenvolveu um motor de combustível líquido pequeno, à base de querosene e ácido nítrico fumegante. Esse nome “ácido nítrico fumegante” representa bem essa substância super corrosiva que foi inventada pelo diabo só para ver o circo pegar fogo aqui na Terra. O fato de haver mais de 300kg disso em um tanque altamente pressurizado dentro daquele foguetinho de 8 metros de altura gerava uma atmosfera de tensão absurda naquela manhã de 21 de maio.

Olha só a tarja de perigo do ácido nítrico fumegante.

Mas esse é um foguete de dois estágios, que significa que são na verdade dois foguetes montados um em cima do outro. A ideia é a seguinte:

Você aciona o foguete de baixo que dispara para cima (som de foguete funcionando). Quando esse primeiro foguete se esgotar (som de foguete vai morrendo), ele é ejetado (som de ejeção) e o segundo foguete acende (som de foguete sendo acionado) e assume o resto da viagem, sem ter o peso extra da carcaça vazia do primeiro estágio. E nesse foguetinho aqui, o primeiro estágio era movido a combustível sólido, um motor que já tinha sido lançado com sucesso em 1949, feito de uma mistura de nitroglicerina e nitrocelulose, outras duas substâncias inventadas quando as coisas estavam calmas demais no inferno.

Acontece que não foi nada fácil lançar o foguete de 49. Foram muitos testes em que o dispositivo ou não acendia (e virava uma bomba prestes a explodir na cara de qualquer aluno que ousasse se aproximar) ou queimava de maneira descontrolada. Ainda assim, todos os amigos e parentes daqueles estudantes da Escola Técnica do Exército adoravam comparecer às tentativas de lançamento. Um desses amigos, mais extrovertido, se equipava com um megafone e se punha a narrar o que estava acontecendo antes do lançamento, um jeito de entreter as pessoas que aguardavam, às vezes horas, até que os preparativos terminassem:

– Salve salve amigos da astronáutica do Rio de Janeiro, meu nome é Sérgio Cassani e vou narrar o que está acontecendo aqui para vocês.

Esse era o jeito que ele sempre começava a narrativa dos eventos mas, invariavelmente, no final, o foguete não subia, ou explodia, ou os dois (explosão de fundo, pessoas falando nãaaao, ahhhh, ooohhh). De qualquer maneira, as pessoas se divertiam por ficarem ali, ouvindo ele contar, com empolgação, tudo sobre o foguete, mesmo já antecipando um desfecho explosivo.

– Tá ali o Lucas terminando de colocar o dispositivo pirotécnico, éee galera, é isso que vai acionar o motor do foguete. Quando ele apertar aquele botãozinho vermelho ali, gera uma faísca lá dentro do motor e dá a ignição. Será que agora vai?

Em uma manhã qualquer, era só o Sérgio começar a falar no megafone que já começa a juntar gente (de fundo: Salve salve amigos da astronáutico do Rio de Janeiro). O sucesso da locução era tanto que logo eles improvisaram uma caixa de som. Mas o foguete não tinha o mesmo sucesso (várias explosões). Não que as explosões não fossem legais de ver, mas foguete subir mesmo estava difícil.

Até que, num certo dia de novembro, com o foguete na plataforma pronto para sair, o Cassani improvisa um:

– Agora vai, agora tem que ir…. Vaaaaiii Filhão!

E ele foi. Ganhou os céus e em três segundos desapareceu entre as nuvens.

A questão é que aconteceu algo parecido com copa do mundo. Quando sai o gol as pessoas se apegam a qualquer superstição besta: ah, fulano estava com com um chapéu na cabeça, e agora não pode tirar senão vai dar azar. O “Vai filhão”, que marcou o primeiro lançamento que deu certo, virou uma frase tão marcante de sorte que, 2 anos depois, viria a estampar a fuselagem do novo foguete. Voltamos para 1951, na plataforma improvisada em Alcântara e sim, esse tinha que dar certo. Muitas coisas estavam em jogo. Toda essa ousadia que começou lá na fundação do ITA e a aposta no programa espacial brasileiro dependiam desse lançamento. O objetivo era claro, alcançar a barreira do espaço, chegar a 100 km de altura, a chamada linha Karman. Valia qualquer mandinga para isso dar certo, até escrever o “Vai Filhão”.

E por falar nisso, aquele foguete era lindão. Um dos estudantes da ETE era amigo do carnavalesco da escola de samba “Unidos dos Telégrafos” e pediu para ele fazer a pintura do foguete.

Detalhe do foguete Garbosa na plataforma de lançamento

Visualiza: o cone dourado na ponta é seguido por listras, também douradas, que contornam o corpo alongado, separando-o em quatro faixas, duas brancas e duas azuis metalizadas. Sobre uma faixa branca está estampado o logo da Agência Espacial Brasileira, e na outra vem o “Vai Filhão”, escrito na vertical, em preto, com a bandeira do Brasil separando o “Vai” do “Filhão”. Na parte de baixo, as listras douradas se espalham cobrindo as aletas (ou as asinhas do foguete, como se fossem as penas de uma flecha). Esse é o segundo estágio. Abaixo dele, está o primeiro estágio: um cilindro bem mais curto, branco, com duas faixas horizontais em azul metálico e mais 4 aletas douradas.

Quando viram o resultado, todos ficaram embasbacados com tamanha formosura. Chamaram o foguete de “Garboso”. Aliás, de “Garbosa”, já que essa classe de foguete recebeu o nome de Arapuá, ou abelha em tupi.

A abelha garbosa estava pronta para partir e seu destino carregava consigo todo o peso de uma nação que não gostava de foguetes, mas que, com as locuções do jovem Cassani, estava começando a se interessar. Da rádio do Maranhão, o sinal era repetido até alcançar São José dos Campos e o Rio de Janeiro. No ITA e na ETE, estudantes, professores e amigos se apinhavam ao redor dos radinhos, vidrados na voz de Sérgio:

– 5, 4, 3, 2, 1…. Vaaaai Filhãooooo!


Você ouviu o primeiro episódio de “O Brasil vai pro espaço”, produzido pelo Scicast.

Os eventos narrados aqui, embora fictícios, utilizam como base fatos e pessoas reais da história do Brasil e do mundo. Em especial, neste episódio:

O então tenente-coronel Casimiro Montenegro Filho foi de fato o idealizador e responsável por criar não somente o ITA como o Centro Técnico Aeronáutico em 1950, que depois se tornaria Centro Técnico Aeroespacial.

Richard Harbert Smith de fato largou seu posto no MIT e veio para o Brasil ajudar no projeto de Montenegro. Richard se tornou o primeiro reitor do ITA.

Os alunos da Escola Técnica do Exército lançaram, realmente, um foguete em 1949 e continuaram a projetar outros projéteis nos anos seguintes. Até 1972 haviam construído 33 foguetes, mas a falta de um programa dedicado a isso impediu que pudessem alcançar voos maiores, literalmente. Na nossa história alternativa, porém, esse incentivo veio.

O personagem Sérgio Cassani é uma homenagem ao divulgador de astronomia Sérgio Sacani que, dentre outras atividades, faz locuções empolgantes de lançamentos de foguetes nos dias de hoje, e consegue atrair milhares de pessoas em suas transmissões. Quem sabe se tivesse existido alguém como ele lá nos primórdios da astronáutica brasileira as coisas não teriam sido diferentes?

O texto, narração e direção deste episódio foram feitos por mim, o Pena.

A voz do Sergio Cassani foi feita por Sergio Sacani.

A edição e sonorização é do Felipe Reis.

E a distribuição é do portal Deviante.

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